sexta-feira, 13 de novembro de 2009

CAPÍTULO LXXII

Janet olhou-o com uma curiosidade nova e sofrida. Res­pira fundo:
— Olha para mim.
— Estou olhando.
Começa:
— Você está falando sério ou...
Geme:
— Duvida?
Ergue-se, transtornada:
— Leleco, vamos sair daqui?
O rapaz levanta-se também:
— Vamos.
Cochicha:
— E a despesa? Paga.
Leleco cata o dinheiro nos bolsos. Pensa: “Não volto pra casa. Não tenho pra onde ir.” Entrega o dinheiro ao garçom e diz para si mesmo: “Eu queria que Janet ficasse comigo, que dormisse comigo e não me deixasse nunca.” Quer sair, nova­mente, mas a pequena o segura:
— Olha o troco.
Repete, como se não entendesse:
— O troco?
Apanha o dinheiro que o garçom trouxe na pequenina bandeja. Sai, sem deixar a gorjeta. Lá fora, a aragem leve e fina gela o suor do seu rosto. Dobram a esquina de S. José, entram na Avenida e vão caminhando, lado a lado, na direção do obelisco. E o que a dilacerava era a coincidência. Pouco antes, com efeito, Lázaro a chamara, com alegre e irrespon­sável frivolidade, de Sônia, de Raskolnikoff, o assassino. Era como se Lázaro soubesse, por uma dessas vidências luminosas e implacáveis... Balbucia, fora de si:
— Eu não acredito que você... Olha, Leleco, você é bom e... Você não matou!
Torturado de febre, com uma sensação de fogo na fronte e nos olhos, arqueja:
— Eu matei porque...
Contou-lhe tudo. Foi uma confissão prolixa, que ia ao detalhe miúdo e cruel: “Ele era muito mais forte do que eu. Sabia judô e me deu uma gravata. Quase perdi os sentidos.” Súbito, pára; faz a pergunta:
— Você me perdoa?
Passavam pela calçada do Senado. A moça olhou-o de­sorientada:
— Eu?
Crispou a mão no seu braço:
— Perdoa?
Por um momento, olham-se apenas. Janet sente pena e medo. Pergunta a si mesma: “E se foi um delírio e nada mais?” Disse, com a voz estrangulada:
— Você deve se entregar à polícia.
Recua, atônito:
— Por quê?
— Você matou e...
Janet está pensando no livro: lembra-se que no romance Raskolnikoff fora preso, condenado. Sônia o acompanhara à Sibéria. “Eu não sou Sônia”, eis o que pensa, com uma angústia tão funda que a desfigurou. Continua:
— Leleco, é para teu bem, Leleco. Você acha que um assassino... Um assassino tem que sofrer, pagar...
Interrompe, violento:
— Não me chame de assassino! Eu matei porque não quis ser mulher de ninguém! Queriam me fazer de mulher!

*

Dr. Odorico veio para a cidade. No lotação (nem lhe ocorrera a idéia de táxi), já admitia que Engraçadinha che­gasse a amá-lo. “Afinal, eu sou um juiz e, nesta terra, o Judi­ciário ainda tem o seu valor.” Com uma crueldade triunfante, lembrou-se da primeira vez em que vira o Zózimo, em Vaz Lobo. Aquele marido, com camisa rubro-negra, sem mangas, não convidava à paixão. De mais a mais, um marido perde todo o interesse sexual. Já na Avenida Brasil, ele se pôs a fazer cálculos: “Quanto tempo me resta de vida amorosa? Te­nho 48 anos. 48. Muito bem. Dos 48 aos 58 e, portanto, dez anos, estarei ainda fisicamente apto.” Precisava apenas tra­tar-se, não exagerar, dormir bem. O sono era importantíssimo. Continua: “Preciso cuidar também da alimentação. Dizem que Ovomaltine faz bem.” E, trêmulo de felicidade, já não queria mais do que dez anos. Sonhava: “Dez anos com Engraçadi­nha. Ou menos. Nove. Digamos: nove.” A rigor, nove anos bem aproveitados significariam a própria eternidade. Uma eternidade de nove anos. Respira fundo: “Durante nove anos, ver Engraçadinha nua, três vezes por semana.” Nos seus bra­ços e nua.

*

Às cinco horas, entrava, finalmente, no Rei da Voz. Es­tava decidido: “Arranco esta geladeira nem que seja a muque.” Antes de mais nada, andou olhando os mostruários. Diante de uma televisão, coça a cabeça: “Se eu fosse um Ar­naldo Guinle ou um Galdeano. Se eu fosse um Schmidt. Galdeano ou Schmidt. Dava à Engraçadinha, além da geladeira, a televisão.” Disse para si mesmo que a televisão tem bons programas. Riu, sozinho, lembrando-se do Golias. E havia uma pequena de TV que ele acompanhava com um agrado quase terno: a Nádia Maria. Havia nessa menina (um talen­to!) uma delicada pungência e outra coisa: sua alegria era aparente, era o disfarce de uma tristeza doce, macia, mas sem consolo... Na porta do Rei da Voz, Dr. Odorico pensa:
— Acho que essa garota vai morrer cedo. É linda e tris­te, essa menina é triste...
Decide-se, finalmente, e entra. “Engraçadinha não vê a Nádia Maria, nem o Golias, nem o Jorge Loredo.” “Formi­dável o Francisco Anísio, com Mara Di Carlo!” No interior do Rei da Voz, dirige-se a um empregado. Empertiga-se:
— Boa-noite.
O caixeiro, com gravatinha borboleta, inclina-se:
— Às suas ordens.
Pigarreia:
— Eu desejava falar com o seu Medina.
E o outro, reverente:
— O seu Medina não está. Aliás, não é aqui.
Faz um espanto amargo:
— Não é aqui?
O caixeiro trata de explicar: “O seu Medina vem aqui, mas não é sempre. Por acaso, veio hoje e acaba de sair. Agorinha mesmo estava aqui.” A contrariedade do juiz foi tão evidente que o outro apressa-se em perguntar:
— Só com ele?
Na sua frustração, Dr. Odorico chega a considerar a ausência do Medina quase que uma desfeita pessoal. Vacila. Estava disposto, porém, a resolver o caso da Sheer Look, de qualquer maneira.
Disse na sua irritação contida:
— O gerente. Quem é o gerente? Quero falar com o gerente.
O rapaz foi na frente, abrindo o caminho:
— Tenha a bondade. Por aqui.
Acompanhou-o. Nova e amarga decepção lhe estava reser­vada. O gerente saíra: fora tomar café. O caixeiro explica: “Não demora. Senta um momentinho!” E, então, enquanto es­pera, resolve telefonar para o Wilson Figueiredo. Faz a ligação. Teve um choque quando a telefonista avisou:
— Seu Wilson não está na redação. Vou ligar pra cima. Deve estar no café. Um momentinho.
Teve de esperar que o Wilson voltasse para a redação.
Atende, Dr. Odorico não pode perder tempo:
— Escuta, Wilson. Você, por acaso, conhece um colega seu, um rapaz que se chama Tinhorão? Jornalista e...
Foi alegremente taxativo:
— Tinhorão? Claro!
— Conhece?
— Meu companheiro! Trabalha aqui comigo!
Exultou:
— Mas que coincidência! E olha, Wilson, presta aten­ção: que tal esse rapaz?
Wilson vacila: “Escuta, Meritíssimo: estou atolado de serviço. E eu ia descer...” Dr. Odorico atalha:
— Mas é assunto de certa urgência, entende? Responde só uma coisa. Em primeiro lugar: o homem é solteiro?
— Solteiríssimo.
Continua:
— Você acha que ele casa?
Wilson Figueiredo foi definitivo:
— Nunca!
O juiz pula: “Como assim?” Explica:
— O Tinhorão é o solteiro nato, compreende?
Neste momento, apareceu o gerente da filial do Rei da Voz.

*

Engraçadinha não entende:
— Você quer que o Leleco more aqui?
— Engraçadinha, pelo amor de Deus, escuta: eu acho, é minha impressão, acho que o Leleco está ameaçado de morte. Não sei, mas acho... Você é mãe, Engraçadinha! Você é mãe!
— Por quem? Ameaçado por quem?
D. Araci baixa a voz:
— Hoje, um tal de Cabeça de Ovo. Outro que não vale nada. Pois o Cabeça de Ovo telefonou pra casa e o Leleco não queria atender. Eu suponho, ouviu? Suponho que esse su­jeito ameaçou o Leleco...
Engraçadinha olha em torno:
— Você sabe que eu gosto de Leleco. Muito até. Gosto mesmo. Mas é que aqui não tem lugar. A casa é pequena e...
D. Araci ia falar, quando entrou Iara. Vinha ofegante. Na sala, rebentou em soluços:
— Mamãe, telefonaram dizendo que o Leleco matou um homem!

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