Em pé, o gerente esperava. Dr. Odorico fazia espanto no telefone:
— Como solteiro nato?
Do outro lado, o Wilson estava com torrentes de matéria em cima da mesa. Com um mínimo de polidez interrompe:
— Escuta, Meritíssimo. Vamos fazer o seguinte: telefona mais tarde. Essa é a pior hora!
O juiz teima:
— Mas o Tinhorão...
Corta, novamente:
— Dr. Odorico, estou atolado! E me chamam noutro telefone. Liga mais tarde, sim? O Tinhorão é um grande sujeito e... Telefona às dez horas. É boa hora e a gente conversa. Tchau.
Meio perdido e mesmo humilhado, Dr. Odorico desliga. “Afinal, eu sou um juiz”, pensa. Julgara notar no Wilson Figueiredo uma certa pressa incivil, uma urgência irritada. Repetia para si mesmo: “Me tratou como se eu fosse um chato qualquer.” A presença, porém, do gerente, espicaçou-o. Afinal, um incidente de pouca monta não podia, em absoluto, afetá-lo a ponto de...
O funcionário do Rei da Voz inclina-se:
— Deseja falar comigo?
O ideal seria o Medina. Dr. Odorico empertiga-se novamente. Acaba de decidir: “Não telefono mais para o Wilson Figueiredo. Ele que me telefone! Que me procure!” Ao mesmo tempo, lamentava a ausência do próprio Medina. O Medina não é bobo. Um sujeito que faz, na TV, programa de 800 mil cruzeiros por vez é tudo, menos um bobo. Ora, o Medina sabe que, no Brasil, pode-se brigar com todo o mundo e nunca com o Judiciário.
Tosse ligeiramente:
— Vim aqui falar com o Medina e...
— Seu Medina saiu há coisa de dois minutos.
E o juiz:
— Talvez o senhor... Eu sou o juiz Odorico Quintela.
— Ah, pois não.
Dr. Odorico dá voltinhas no espaço exíguo. Sem olhar o gerente, ia falando, com uma premeditada negligência:
— O caso é o seguinte. Em poucas palavras, porque não desejo tomar o seu tempo...
Tira o relógio do bolso do colete e espia a hora. (Era uma pausa estudada. Queria dar uma sensação de extrema naturalidade.) Guarda o relógio e continua:
— Estou interessado numa geladeira. Assim do tipo e preço da Sheer Look. E o que eu queria do Medina, justamente, era uma diferençazinha. Um preço mais em conta, entende?
Andando de um lado para outro, não concedera ainda um único olhar ao gerente. Subitamente, estaca e, pela primeira vez, o encara. O outro faz a pergunta hesitante:
— Como é mesmo a sua graça? Eu não ouvi direito.
Repete:
— Eu sou o juiz Odorico Quintela. Odorico. Juiz.
Alteara a voz porque, realmente, uma vitrola fazia, ali, uma barulheira alucinante. O gerente arremessou-se:
— Tenha a bondade. Por aqui. E o senhor me desculpe. Não entendi quando o senhor disse, por causa do barulho.
Feliz, Dr. Odorico ia atrás. Sem ter de que, numa cordialidade gratuita e indiscriminada, cumprimentava risonhamente todo o mundo. Constatava, mais uma vez, que todo o mundo adulava o Judiciário. Pensava no Wilson Figueiredo que o despachara sumariamente: “O Oto, não! O Oto Lara sempre me tratou com um respeito filial!” O gerente parava:
— Essa aqui, por exemplo. Tenha a bondade.
O juiz toma um susto. Era uma geladeira pomposa, compacta, majestática, como uma catedral branca. O gerente abre as portas pesadas. No interior, havia uma iluminação mágica e lunar. Por um momento, Dr. Odorico sentiu na carne e na alma a dor de não ser um Schmidt, um Galdeano, um Sebastião Pais de Almeida. “Nós, juizes, somos mal pagos!” gemeu. Mas o gerente estava de uma gentileza tão sôfrega e obstinada que o Dr. Odorico fez um cordial escândalo:
— Meu amigo! Os juizes são quase barnabés!
O outro, de olho rútilo, cicia:
— Olha, cem contos, mas vale!
Passam adiante. Finalmente, encontram, lá num canto, meio esquecida e humilhada, uma geladeira bem menor. A subserviência do empregado deu ao juiz autoridade bastante para regatear até o último tostão. Pensava: “Se fosse o próprio Medina, talvez eu levasse esse troço dado, de presente.” Ficou tudo por 35 contos. Por fim, Dr. Odorico dá o golpe de misericórdia: “Há um detalhe ainda, de somenos importância.” O que ele chamava ‘o detalhe’ era dispensa da entrada. Há um silêncio. O gerente gagueja: “Eu teria que falar com o seu Medina.” Dr. Odorico abre os braços:
— Mas, meu amigo! O que é que há? Afinal de contas, o Judiciário é um Poder que, graças a Deus, resistiu à degringolada. Ou o senhor pensa, talvez, que eu, um juiz... Meu amigo, olha aqui a minha identidade. Eu não vou fugir com a sua geladeira!
Enfiou a carteirinha nos olhos do gerente. Este, com a cara incendiada, pôs as mãos na cabeça:
— O senhor me interpretou mal. Lógico! Não precisa entrada!
Esbaforido, com a sensação de uma gafe abominável, o gerente arrasta o juiz: “Claro! Claro!” Sob a adulação direta e maciça, Dr. Odorico pensa na pequena descortesia do Wilson Figueiredo: “O Oto não faria isso! O Wilson me tratou como se eu fosse um pé-rapado!” Mas quando fechou o negócio, e embolsou o comprovante, sentiu-se tão feliz, tão realizado que se deixou banhar numa onda de indulgência total. Disse para si mesmo, erguendo a fronte: “O Wilson é bom rapaz! Não teve intenção de melindrar.” Levanta-se e estende a mão ao gerente:
— Quero que seja entregue ainda hoje! É importante! Hoje, sem falta! — e mentiu, com um cordial descaro: — Presente de aniversário e, portanto, com data! Veja lá, hoje!
*
Pára, ao lado do Rei da Voz, para tomar café em pé. Encontra, lá, o Ib Teixeira, jornalista. “Tamanho não é documento”, pensa o Dr. Odorico ao cumprimentá-lo. E, com efeito, o juiz não entendia que, sendo Ib tão pequenino, fosse ao mesmo tempo tão feroz.
Pondo açúcar na xícara do Dr. Odorico, o jornalista abre o riso:
— Como vai sua ‘Aragarças’?
Dr. Odorico mexe o próprio café e não entende:
— Minha como?
Ib explica:
— Hoje em dia não há brasileiro que não tenha no bolso a sua revolução, a sua ditadura, a sua matança. Mixou a ‘Aragarças’ do inimigo. Agora, vem a nossa!
Em tom cavo, Dr. Odorico atalha:
— Nada de violências!
O outro insiste, na euforia sanguinária:
— O senhor também tem no bolso a sua ‘Aragarças’! Até o Juscelino tem!
*
Na própria noite do crime, o Amado Ribeiro tratou de convencer Maria Aparecida. A bonita senhora estava impressionadíssima com o repórter. Achava que ele falava bem, usando expressões que, inclusive, ela não entendia. Depois de certificar-se de que Maria Aparecida não contara para ninguém suas suspeitas, anunciou à queima-roupa:
— Vou raptá-la!
Toma um susto: “Como?” Estava sentado e ergueu-se. Na gana de repórter, com uma excitação que rompe das profundezas e se irradia por todo o ser, fala com uma abundância triunfal:
— Olha: é um rapto de araque. Pego a senhora, ponho a senhora num hotel e a senhora fica lá escondida. Entendeu? A senhora não fala com ninguém. Só comigo. Nem com a polícia.
Meio atônita, vira-se para a amiga. O romanesco da idéia excitava a imaginação de ambas. Maria Aparecida balbucia: “Mas pra que tudo isso?” Responde com outra pergunta:
— A senhora quer que seu marido seja o assassino? Não quer?
Responde: “Não se trata de querer. Ele é o assassino.” Então, com um descaro que as fascinou, ele quis demonstrar que a veracidade nunca foi problema jornalístico. Argumentou com o caso presente do Cadelão. O professor Petruscu era ou não era o assassino? Dizia o Amado Ribeiro:
— Ser ou não ser, não importa. Importa o que o jornal quer, o que o jornal diz. O jornal manipula os fatos e as pessoas. Com um pé nas costas, um repórter de setor, veja bem: um repórter de setor transforma um Judas num Cristo e vice-versa. E, na sexta-feira da Paixão, lá estaremos beijando o pé do Judas e, no sábado de Aleluia, malhando o Cristo.
As duas senhoras ouviam Amado Ribeiro com uma espécie de deslumbramento. Ele dizia qualquer coisa com uma ênfase de verdades eternas. Seu exagero caricatural como que dava à imprensa uma dimensão gigantesca e sinistra:
— Seu marido é assassino, desde já! Assassino, compreendeu? Primeiro, porque a senhora quer. Não quer? Quer, sim. Sejamos humanos: a senhora quer. E como a senhora quer, eu vou funcionar, aqui, como seu amigo incondicional. Sou macaco velho da imprensa e sei como se fabricam inocentes e culpados. É pinto!
— Mas então o senhor acha que...
Sem lhes dar tempo de raciocinar, ele acrescentou um detalhe gratuito, mentiroso e surpreendente: “Eu sou neto de índio, percebeu?” Isso não queria dizer nada. Mas ele achou que um toque de Alencar seria um efeito a mais. De fato, as duas arregalaram os olhos. Continuou: ela iria, já, em sua companhia, para o Hotel das Paineiras. Repetia, incisivo: “Já! com a roupa do corpo! Todas as despesas pagas!”
No dia seguinte, toda a imprensa abria cabeçalhos colossais sobre o crime. Lá estava também a notícia de que desaparecera, em circunstâncias misteriosíssimas, a esposa do professor romeno. A imprensa insinuava a hipótese de um novo crime. Só o jornal de Amado Ribeiro é que anunciava, para o dia seguinte, a palavra da ‘testemunha bomba’. O repórter conseguira levar Maria Aparecida e encerrá-la num quarto do hotel. Já insinuara:
— Sou honesto pra burro! A única coisa que me compra é a mulher bonita.
Maria Aparecida pasmava para aquele falso neto de índio.
*
Em Vaz Lobo, D. Araci lança-se aos braços de Engraçadinha: “Pois é!”, e soluçava. “O telefone não pára, hoje!” Choraram todas: as duas meninas e as duas senhoras. Finalmente, Engraçadinha suspira:
— Está bem, Araci. Leleco fica aqui. Dorme na sala com Durval. Mas olha: por uns dias! Só por uns dias!
Neste momento, encosta na porta o caminhão do Rei da Voz trazendo a geladeira.
— Como solteiro nato?
Do outro lado, o Wilson estava com torrentes de matéria em cima da mesa. Com um mínimo de polidez interrompe:
— Escuta, Meritíssimo. Vamos fazer o seguinte: telefona mais tarde. Essa é a pior hora!
O juiz teima:
— Mas o Tinhorão...
Corta, novamente:
— Dr. Odorico, estou atolado! E me chamam noutro telefone. Liga mais tarde, sim? O Tinhorão é um grande sujeito e... Telefona às dez horas. É boa hora e a gente conversa. Tchau.
Meio perdido e mesmo humilhado, Dr. Odorico desliga. “Afinal, eu sou um juiz”, pensa. Julgara notar no Wilson Figueiredo uma certa pressa incivil, uma urgência irritada. Repetia para si mesmo: “Me tratou como se eu fosse um chato qualquer.” A presença, porém, do gerente, espicaçou-o. Afinal, um incidente de pouca monta não podia, em absoluto, afetá-lo a ponto de...
O funcionário do Rei da Voz inclina-se:
— Deseja falar comigo?
O ideal seria o Medina. Dr. Odorico empertiga-se novamente. Acaba de decidir: “Não telefono mais para o Wilson Figueiredo. Ele que me telefone! Que me procure!” Ao mesmo tempo, lamentava a ausência do próprio Medina. O Medina não é bobo. Um sujeito que faz, na TV, programa de 800 mil cruzeiros por vez é tudo, menos um bobo. Ora, o Medina sabe que, no Brasil, pode-se brigar com todo o mundo e nunca com o Judiciário.
Tosse ligeiramente:
— Vim aqui falar com o Medina e...
— Seu Medina saiu há coisa de dois minutos.
E o juiz:
— Talvez o senhor... Eu sou o juiz Odorico Quintela.
— Ah, pois não.
Dr. Odorico dá voltinhas no espaço exíguo. Sem olhar o gerente, ia falando, com uma premeditada negligência:
— O caso é o seguinte. Em poucas palavras, porque não desejo tomar o seu tempo...
Tira o relógio do bolso do colete e espia a hora. (Era uma pausa estudada. Queria dar uma sensação de extrema naturalidade.) Guarda o relógio e continua:
— Estou interessado numa geladeira. Assim do tipo e preço da Sheer Look. E o que eu queria do Medina, justamente, era uma diferençazinha. Um preço mais em conta, entende?
Andando de um lado para outro, não concedera ainda um único olhar ao gerente. Subitamente, estaca e, pela primeira vez, o encara. O outro faz a pergunta hesitante:
— Como é mesmo a sua graça? Eu não ouvi direito.
Repete:
— Eu sou o juiz Odorico Quintela. Odorico. Juiz.
Alteara a voz porque, realmente, uma vitrola fazia, ali, uma barulheira alucinante. O gerente arremessou-se:
— Tenha a bondade. Por aqui. E o senhor me desculpe. Não entendi quando o senhor disse, por causa do barulho.
Feliz, Dr. Odorico ia atrás. Sem ter de que, numa cordialidade gratuita e indiscriminada, cumprimentava risonhamente todo o mundo. Constatava, mais uma vez, que todo o mundo adulava o Judiciário. Pensava no Wilson Figueiredo que o despachara sumariamente: “O Oto, não! O Oto Lara sempre me tratou com um respeito filial!” O gerente parava:
— Essa aqui, por exemplo. Tenha a bondade.
O juiz toma um susto. Era uma geladeira pomposa, compacta, majestática, como uma catedral branca. O gerente abre as portas pesadas. No interior, havia uma iluminação mágica e lunar. Por um momento, Dr. Odorico sentiu na carne e na alma a dor de não ser um Schmidt, um Galdeano, um Sebastião Pais de Almeida. “Nós, juizes, somos mal pagos!” gemeu. Mas o gerente estava de uma gentileza tão sôfrega e obstinada que o Dr. Odorico fez um cordial escândalo:
— Meu amigo! Os juizes são quase barnabés!
O outro, de olho rútilo, cicia:
— Olha, cem contos, mas vale!
Passam adiante. Finalmente, encontram, lá num canto, meio esquecida e humilhada, uma geladeira bem menor. A subserviência do empregado deu ao juiz autoridade bastante para regatear até o último tostão. Pensava: “Se fosse o próprio Medina, talvez eu levasse esse troço dado, de presente.” Ficou tudo por 35 contos. Por fim, Dr. Odorico dá o golpe de misericórdia: “Há um detalhe ainda, de somenos importância.” O que ele chamava ‘o detalhe’ era dispensa da entrada. Há um silêncio. O gerente gagueja: “Eu teria que falar com o seu Medina.” Dr. Odorico abre os braços:
— Mas, meu amigo! O que é que há? Afinal de contas, o Judiciário é um Poder que, graças a Deus, resistiu à degringolada. Ou o senhor pensa, talvez, que eu, um juiz... Meu amigo, olha aqui a minha identidade. Eu não vou fugir com a sua geladeira!
Enfiou a carteirinha nos olhos do gerente. Este, com a cara incendiada, pôs as mãos na cabeça:
— O senhor me interpretou mal. Lógico! Não precisa entrada!
Esbaforido, com a sensação de uma gafe abominável, o gerente arrasta o juiz: “Claro! Claro!” Sob a adulação direta e maciça, Dr. Odorico pensa na pequena descortesia do Wilson Figueiredo: “O Oto não faria isso! O Wilson me tratou como se eu fosse um pé-rapado!” Mas quando fechou o negócio, e embolsou o comprovante, sentiu-se tão feliz, tão realizado que se deixou banhar numa onda de indulgência total. Disse para si mesmo, erguendo a fronte: “O Wilson é bom rapaz! Não teve intenção de melindrar.” Levanta-se e estende a mão ao gerente:
— Quero que seja entregue ainda hoje! É importante! Hoje, sem falta! — e mentiu, com um cordial descaro: — Presente de aniversário e, portanto, com data! Veja lá, hoje!
*
Pára, ao lado do Rei da Voz, para tomar café em pé. Encontra, lá, o Ib Teixeira, jornalista. “Tamanho não é documento”, pensa o Dr. Odorico ao cumprimentá-lo. E, com efeito, o juiz não entendia que, sendo Ib tão pequenino, fosse ao mesmo tempo tão feroz.
Pondo açúcar na xícara do Dr. Odorico, o jornalista abre o riso:
— Como vai sua ‘Aragarças’?
Dr. Odorico mexe o próprio café e não entende:
— Minha como?
Ib explica:
— Hoje em dia não há brasileiro que não tenha no bolso a sua revolução, a sua ditadura, a sua matança. Mixou a ‘Aragarças’ do inimigo. Agora, vem a nossa!
Em tom cavo, Dr. Odorico atalha:
— Nada de violências!
O outro insiste, na euforia sanguinária:
— O senhor também tem no bolso a sua ‘Aragarças’! Até o Juscelino tem!
*
Na própria noite do crime, o Amado Ribeiro tratou de convencer Maria Aparecida. A bonita senhora estava impressionadíssima com o repórter. Achava que ele falava bem, usando expressões que, inclusive, ela não entendia. Depois de certificar-se de que Maria Aparecida não contara para ninguém suas suspeitas, anunciou à queima-roupa:
— Vou raptá-la!
Toma um susto: “Como?” Estava sentado e ergueu-se. Na gana de repórter, com uma excitação que rompe das profundezas e se irradia por todo o ser, fala com uma abundância triunfal:
— Olha: é um rapto de araque. Pego a senhora, ponho a senhora num hotel e a senhora fica lá escondida. Entendeu? A senhora não fala com ninguém. Só comigo. Nem com a polícia.
Meio atônita, vira-se para a amiga. O romanesco da idéia excitava a imaginação de ambas. Maria Aparecida balbucia: “Mas pra que tudo isso?” Responde com outra pergunta:
— A senhora quer que seu marido seja o assassino? Não quer?
Responde: “Não se trata de querer. Ele é o assassino.” Então, com um descaro que as fascinou, ele quis demonstrar que a veracidade nunca foi problema jornalístico. Argumentou com o caso presente do Cadelão. O professor Petruscu era ou não era o assassino? Dizia o Amado Ribeiro:
— Ser ou não ser, não importa. Importa o que o jornal quer, o que o jornal diz. O jornal manipula os fatos e as pessoas. Com um pé nas costas, um repórter de setor, veja bem: um repórter de setor transforma um Judas num Cristo e vice-versa. E, na sexta-feira da Paixão, lá estaremos beijando o pé do Judas e, no sábado de Aleluia, malhando o Cristo.
As duas senhoras ouviam Amado Ribeiro com uma espécie de deslumbramento. Ele dizia qualquer coisa com uma ênfase de verdades eternas. Seu exagero caricatural como que dava à imprensa uma dimensão gigantesca e sinistra:
— Seu marido é assassino, desde já! Assassino, compreendeu? Primeiro, porque a senhora quer. Não quer? Quer, sim. Sejamos humanos: a senhora quer. E como a senhora quer, eu vou funcionar, aqui, como seu amigo incondicional. Sou macaco velho da imprensa e sei como se fabricam inocentes e culpados. É pinto!
— Mas então o senhor acha que...
Sem lhes dar tempo de raciocinar, ele acrescentou um detalhe gratuito, mentiroso e surpreendente: “Eu sou neto de índio, percebeu?” Isso não queria dizer nada. Mas ele achou que um toque de Alencar seria um efeito a mais. De fato, as duas arregalaram os olhos. Continuou: ela iria, já, em sua companhia, para o Hotel das Paineiras. Repetia, incisivo: “Já! com a roupa do corpo! Todas as despesas pagas!”
No dia seguinte, toda a imprensa abria cabeçalhos colossais sobre o crime. Lá estava também a notícia de que desaparecera, em circunstâncias misteriosíssimas, a esposa do professor romeno. A imprensa insinuava a hipótese de um novo crime. Só o jornal de Amado Ribeiro é que anunciava, para o dia seguinte, a palavra da ‘testemunha bomba’. O repórter conseguira levar Maria Aparecida e encerrá-la num quarto do hotel. Já insinuara:
— Sou honesto pra burro! A única coisa que me compra é a mulher bonita.
Maria Aparecida pasmava para aquele falso neto de índio.
*
Em Vaz Lobo, D. Araci lança-se aos braços de Engraçadinha: “Pois é!”, e soluçava. “O telefone não pára, hoje!” Choraram todas: as duas meninas e as duas senhoras. Finalmente, Engraçadinha suspira:
— Está bem, Araci. Leleco fica aqui. Dorme na sala com Durval. Mas olha: por uns dias! Só por uns dias!
Neste momento, encosta na porta o caminhão do Rei da Voz trazendo a geladeira.
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