sábado, 14 de novembro de 2009

CAPÍTULO LXXIII

Em pé, o gerente esperava. Dr. Odorico fazia espanto no telefone:
— Como solteiro nato?
Do outro lado, o Wilson estava com torrentes de matéria em cima da mesa. Com um mínimo de polidez interrompe:
— Escuta, Meritíssimo. Vamos fazer o seguinte: telefona mais tarde. Essa é a pior hora!
O juiz teima:
— Mas o Tinhorão...
Corta, novamente:
— Dr. Odorico, estou atolado! E me chamam noutro te­lefone. Liga mais tarde, sim? O Tinhorão é um grande sujeito e... Telefona às dez horas. É boa hora e a gente conversa. Tchau.
Meio perdido e mesmo humilhado, Dr. Odorico desliga. “Afinal, eu sou um juiz”, pensa. Julgara notar no Wilson Fi­gueiredo uma certa pressa incivil, uma urgência irritada. Re­petia para si mesmo: “Me tratou como se eu fosse um chato qualquer.” A presença, porém, do gerente, espicaçou-o. Afinal, um incidente de pouca monta não podia, em absoluto, afetá-lo a ponto de...
O funcionário do Rei da Voz inclina-se:
— Deseja falar comigo?
O ideal seria o Medina. Dr. Odorico empertiga-se nova­mente. Acaba de decidir: “Não telefono mais para o Wilson Figueiredo. Ele que me telefone! Que me procure!” Ao mesmo tempo, lamentava a ausência do próprio Medina. O Medina não é bobo. Um sujeito que faz, na TV, programa de 800 mil cruzeiros por vez é tudo, menos um bobo. Ora, o Medina sabe que, no Brasil, pode-se brigar com todo o mundo e nunca com o Judiciário.
Tosse ligeiramente:
— Vim aqui falar com o Medina e...
— Seu Medina saiu há coisa de dois minutos.
E o juiz:
— Talvez o senhor... Eu sou o juiz Odorico Quintela.
— Ah, pois não.
Dr. Odorico dá voltinhas no espaço exíguo. Sem olhar o gerente, ia falando, com uma premeditada negligência:
— O caso é o seguinte. Em poucas palavras, porque não desejo tomar o seu tempo...
Tira o relógio do bolso do colete e espia a hora. (Era uma pausa estudada. Queria dar uma sensação de extrema naturalidade.) Guarda o relógio e continua:
— Estou interessado numa geladeira. Assim do tipo e preço da Sheer Look. E o que eu queria do Medina, justa­mente, era uma diferençazinha. Um preço mais em conta, en­tende?
Andando de um lado para outro, não concedera ainda um único olhar ao gerente. Subitamente, estaca e, pela pri­meira vez, o encara. O outro faz a pergunta hesitante:
— Como é mesmo a sua graça? Eu não ouvi direito.
Repete:
— Eu sou o juiz Odorico Quintela. Odorico. Juiz.
Alteara a voz porque, realmente, uma vitrola fazia, ali, uma barulheira alucinante. O gerente arremessou-se:
— Tenha a bondade. Por aqui. E o senhor me desculpe. Não entendi quando o senhor disse, por causa do barulho.
Feliz, Dr. Odorico ia atrás. Sem ter de que, numa cordia­lidade gratuita e indiscriminada, cumprimentava risonhamente todo o mundo. Constatava, mais uma vez, que todo o mundo adulava o Judiciário. Pensava no Wilson Figueiredo que o despachara sumariamente: “O Oto, não! O Oto Lara sempre me tratou com um respeito filial!” O gerente parava:
— Essa aqui, por exemplo. Tenha a bondade.
O juiz toma um susto. Era uma geladeira pomposa, com­pacta, majestática, como uma catedral branca. O gerente abre as portas pesadas. No interior, havia uma iluminação mágica e lunar. Por um momento, Dr. Odorico sentiu na carne e na alma a dor de não ser um Schmidt, um Galdeano, um Sebas­tião Pais de Almeida. “Nós, juizes, somos mal pagos!” gemeu. Mas o gerente estava de uma gentileza tão sôfrega e obstinada que o Dr. Odorico fez um cordial escândalo:
— Meu amigo! Os juizes são quase barnabés!
O outro, de olho rútilo, cicia:
— Olha, cem contos, mas vale!
Passam adiante. Finalmente, encontram, lá num canto, meio esquecida e humilhada, uma geladeira bem menor. A subserviência do empregado deu ao juiz autoridade bastante para regatear até o último tostão. Pensava: “Se fosse o próprio Medina, talvez eu levasse esse troço dado, de presente.” Ficou tudo por 35 contos. Por fim, Dr. Odorico dá o golpe de mi­sericórdia: “Há um detalhe ainda, de somenos importância.” O que ele chamava ‘o detalhe’ era dispensa da entrada. Há um silêncio. O gerente gagueja: “Eu teria que falar com o seu Medina.” Dr. Odorico abre os braços:
— Mas, meu amigo! O que é que há? Afinal de contas, o Judiciário é um Poder que, graças a Deus, resistiu à degringolada. Ou o senhor pensa, talvez, que eu, um juiz... Meu amigo, olha aqui a minha identidade. Eu não vou fugir com a sua geladeira!
Enfiou a carteirinha nos olhos do gerente. Este, com a cara incendiada, pôs as mãos na cabeça:
— O senhor me interpretou mal. Lógico! Não precisa entrada!
Esbaforido, com a sensação de uma gafe abominável, o gerente arrasta o juiz: “Claro! Claro!” Sob a adulação direta e maciça, Dr. Odorico pensa na pequena descortesia do Wilson Figueiredo: “O Oto não faria isso! O Wilson me tratou como se eu fosse um pé-rapado!” Mas quando fechou o negócio, e embolsou o comprovante, sentiu-se tão feliz, tão realizado que se deixou banhar numa onda de indulgência total. Disse para si mesmo, erguendo a fronte: “O Wilson é bom rapaz! Não teve intenção de melindrar.” Levanta-se e estende a mão ao gerente:
— Quero que seja entregue ainda hoje! É importante! Hoje, sem falta! — e mentiu, com um cordial descaro: — Presente de aniversário e, portanto, com data! Veja lá, hoje!

*

Pára, ao lado do Rei da Voz, para tomar café em pé. Encontra, lá, o Ib Teixeira, jornalista. “Tamanho não é do­cumento”, pensa o Dr. Odorico ao cumprimentá-lo. E, com efeito, o juiz não entendia que, sendo Ib tão pequenino, fosse ao mesmo tempo tão feroz.
Pondo açúcar na xícara do Dr. Odorico, o jornalista abre o riso:
— Como vai sua ‘Aragarças’?
Dr. Odorico mexe o próprio café e não entende:
— Minha como?
Ib explica:
— Hoje em dia não há brasileiro que não tenha no bolso a sua revolução, a sua ditadura, a sua matança. Mixou a ‘Aragarças’ do inimigo. Agora, vem a nossa!
Em tom cavo, Dr. Odorico atalha:
— Nada de violências!
O outro insiste, na euforia sanguinária:
— O senhor também tem no bolso a sua ‘Aragarças’! Até o Juscelino tem!

*

Na própria noite do crime, o Amado Ribeiro tratou de convencer Maria Aparecida. A bonita senhora estava impressionadíssima com o repórter. Achava que ele falava bem, usando expressões que, inclusive, ela não entendia. Depois de certificar-se de que Maria Aparecida não contara para ninguém suas suspeitas, anunciou à queima-roupa:
— Vou raptá-la!
Toma um susto: “Como?” Estava sentado e ergueu-se. Na gana de repórter, com uma excitação que rompe das pro­fundezas e se irradia por todo o ser, fala com uma abundância triunfal:
— Olha: é um rapto de araque. Pego a senhora, ponho a senhora num hotel e a senhora fica lá escondida. Entendeu? A senhora não fala com ninguém. Só comigo. Nem com a polícia.
Meio atônita, vira-se para a amiga. O romanesco da idéia excitava a imaginação de ambas. Maria Aparecida balbucia: “Mas pra que tudo isso?” Responde com outra pergunta:
— A senhora quer que seu marido seja o assassino? Não quer?
Responde: “Não se trata de querer. Ele é o assassino.” Então, com um descaro que as fascinou, ele quis demonstrar que a veracidade nunca foi problema jornalístico. Argumentou com o caso presente do Cadelão. O professor Petruscu era ou não era o assassino? Dizia o Amado Ribeiro:
— Ser ou não ser, não importa. Importa o que o jornal quer, o que o jornal diz. O jornal manipula os fatos e as pes­soas. Com um pé nas costas, um repórter de setor, veja bem: um repórter de setor transforma um Judas num Cristo e vice-versa. E, na sexta-feira da Paixão, lá estaremos beijando o pé do Judas e, no sábado de Aleluia, malhando o Cristo.
As duas senhoras ouviam Amado Ribeiro com uma es­pécie de deslumbramento. Ele dizia qualquer coisa com uma ênfase de verdades eternas. Seu exagero caricatural como que dava à imprensa uma dimensão gigantesca e sinistra:
— Seu marido é assassino, desde já! Assassino, com­preendeu? Primeiro, porque a senhora quer. Não quer? Quer, sim. Sejamos humanos: a senhora quer. E como a senhora quer, eu vou funcionar, aqui, como seu amigo incondicional. Sou macaco velho da imprensa e sei como se fabricam inocentes e culpados. É pinto!
— Mas então o senhor acha que...
Sem lhes dar tempo de raciocinar, ele acrescentou um de­talhe gratuito, mentiroso e surpreendente: “Eu sou neto de índio, percebeu?” Isso não queria dizer nada. Mas ele achou que um toque de Alencar seria um efeito a mais. De fato, as duas arregalaram os olhos. Continuou: ela iria, já, em sua companhia, para o Hotel das Paineiras. Repetia, incisivo: “Já! com a roupa do corpo! Todas as despesas pagas!”
No dia seguinte, toda a imprensa abria cabeçalhos colos­sais sobre o crime. Lá estava também a notícia de que desa­parecera, em circunstâncias misteriosíssimas, a esposa do pro­fessor romeno. A imprensa insinuava a hipótese de um novo crime. Só o jornal de Amado Ribeiro é que anunciava, para o dia seguinte, a palavra da ‘testemunha bomba’. O repórter conseguira levar Maria Aparecida e encerrá-la num quarto do hotel. Já insinuara:
— Sou honesto pra burro! A única coisa que me compra é a mulher bonita.
Maria Aparecida pasmava para aquele falso neto de índio.

*

Em Vaz Lobo, D. Araci lança-se aos braços de Engra­çadinha: “Pois é!”, e soluçava. “O telefone não pára, hoje!” Choraram todas: as duas meninas e as duas senhoras. Final­mente, Engraçadinha suspira:
— Está bem, Araci. Leleco fica aqui. Dorme na sala com Durval. Mas olha: por uns dias! Só por uns dias!
Neste momento, encosta na porta o caminhão do Rei da Voz trazendo a geladeira.

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