domingo, 15 de novembro de 2009

CAPÍTULO LXXIV

Estavam sentados no Jardim da Glória. Do Aterro, er­guia-se uma poeira cor de canela. Leleco pergunta:
— É só isso que você tem para me dizer?
Janet começa a chorar:
— Mas compreenda! Você matou, Leleco! Você é cul­pado!
Negou, violento (naquele momento, odiou a pequena):
— Não sou culpado de nada! Queriam me fazer de mu­lher! Eram três! Eu ia ser mulher de três! Dois saíram e eu matei um, matei o que ficou! Você diz que eu sou culpado. Quero saber: onde está minha culpa?
Respondeu, trincando os dentes:
— Ninguém tem o direito de matar!
Ela pensava em Rakolnikoff, o assassino do livro. En­tregara-se à polícia, fora julgado e condenado. (Condenado a I trabalhos forçados.) Janet apertou o seu braço:
— Você acha que, depois de matar, pode andar pela rua, ir ao cinema, ao teatro, acha?
O rapaz passa na boca as costas da mão. Tem um riso pesado:
— Por que é que você não me denuncia? Vai ao distrito e diz que fui eu! Vai! Olha aquele Cosme e Damião. Me de­nuncia, Janet! Mas uma coisa eu te digo!
Pausa. Ele sente, ainda, a febre gelada. Ofegante, com­pleta:
— Eu não me entrego! Eles que me prendam! E nunca se esqueça: você me negou o seu perdão.
Levantou-se. Atônita, balbucia:
— Vem cá! Leleco!
O rapaz não ouviu ou não quis voltar. Ela apanha o len­cinho na bolsa. Enxuga os olhos e, depois, assoa-se ligeira­mente. O carrilhão da Mesbla tocava uma hora qualquer.

*

Dr. Odorico despede-se do Ib. Na esquina da Câmara dos Vereadores tem uma vacilação. Decide, finalmente: “Vou dar um pulo lá em casa. Tomo banho. Ponho perfume.” Vinha um táxi livre e, impulsivamente, manda pará-lo. Vivia um desses momentos de plenitude, que não comportam economias peque­ninas e sórdidas. Embarca, radiante. Talvez com exagero ou injustiça, achava que o brasileiro cheira mal. Por isso mesmo, não dispensava um perfume discreto, mas sensível. Desembarca em casa. Mal podia imaginar que estava cometendo uma im­prudência fatal.
Entra e vai encontrar a mulher, no quarto, limando as unhas. Admirada, pergunta:
— Que bicho te mordeu?
Tira o paletó:
— Por quê?
Coloca o paletó na cadeira e pensa: “Lá vem bomba!” Abre o colarinho e puxa a gravata. Entretida com as unhas, a mulher continua:
— Você aqui em casa, a essa hora!
Ele senta na cama para tirar os sapatos. Pensa: “Quanto menos conversa, melhor.” De uma maneira geral, achava que deve haver pouquíssimas palavras entre marido e mulher. A esposa fala, ao mesmo tempo que vai passando a serrinha nas unhas:
— Em que ficamos?
Sem meias, calça os chinelos. Queria estar presente, em Vaz Lobo, quando chegasse a geladeira. Fazia questão de ver o impacto. Vira-se para a esposa:
— Não entendi.
Ergue o olhar:
— Você veio com aquela conversa, ontem.
Seu espanto foi sincero: “Que conversa?” Irritou-se:
— Oh, criatura! Você não me disse, ontem? Disse. Você disse. Disse que estava incapaz, não sei que lá.
Em voz cava, admite: “Pois é, infelizmente.” Arranca a camisa e vai apanhar outra, fresquinha e limpa. Ela abandona a serrinha junto ao pequenino frasco de verniz; pergunta, com uma doçura ameaçadora:
— E eu?
O marido estende a camisa fina e cara, em cima da cama. Vira-se: “Como assim?” Já sente as palpitações prévias da úl­cera, anunciando contrariedades iminentes. A mulher ergue-se:
— Você se diz incapaz...
Atalha, vivamente, num desafio:
— Ou você duvida? Querendo eu trago um atestado mé­dico, amanhã mesmo, quer? Trago!
Encarou-o dura:
— Deixa de conversa! Quero saber: em que ficamos? Eu me casei com um homem. Ou você não é homem?
Ele precisava correr contra o tempo para receber a gela­deira, em Vaz Lobo. Hora mais imprópria aquela para um bate-boca conjugal. Ao mesmo tempo, não podia deixar a mu­lher falando sozinha. Quis argumentar:
— Escuta aqui. Nem eu nem você somos mais crianças. Tenho 48...
Corta:
— Cinqüenta e dois!
O golpe inesperado abalou-o, materialmente. Cambaleou e, por um momento, não teve o que dizer. Ela exultava:
— Sim, senhor! Você é de 907. Ou não é? É. Tenho ali sua certidão de nascimento. 907. 52 anos.
A mulher tem um riso curto e áspero de bruxa. Sim, bruxa de disco infantil. O juiz teria preferido uma bofetada e nunca... Em desespero de causa, agarrou-se ao argumento do inimigo:
— Mais uma razão. Se eu tenho 52...
Corta, outra vez:
— Isso não é documento! Você nunca foi grande coisa, ouviu? Já na lua-de-mel, pois é: na lua-de-mel, imagine! Você nunca se explicava, ora que conversa!
Era demais. Esse humilhante sarcasmo o pôs fora de si. E pensa: “Eu, um juiz!” Parecia-lhe que o desrespeito ao Ju­diciário antecipa e anuncia uma degringolada de valores. Ima­gine o Oto que tinha sempre um riso no bolso, o Oto Lara ali, assistindo. O Oto puxando o riso do bolso!
Começa:
— Criatura! Eu chamo o médico! Ele vem aqui! Enten­da: a velhice é um problema da natureza, e não meu. Ninguém é velho por gosto! Por exemplo: você acha que eu inventei a arteriosclerose?
Há um silêncio. No seu desespero, ele reflete: “Acabo chegando lá, depois da geladeira!” O curioso é que, em plena humilhação, decide: “Não pago as prestações do Rei da Voz. O Medina, que não é bobo, vai fazer vista grossa. Duvido que ele me encoste na parede!”
Fora de si, dramatiza:
— Sou incapaz! E você quer que eu faça...
Olham-se. Em vez de responder, ela pergunta:
— Afinal, você veio aqui fazer o quê?
Disse, quase chorando:
— Tomar banho.
Crispa-se ouvindo o riso de bruxa de disco infantil. Ela faz pouco caso:
— A princípio, pensei que... Mas logo vi. Olha: vai. Vai tomar teu banho. Toma teu banho e depois conversa­remos.
Abandona o quarto, entra no banheiro. Pragueja para si mesmo: “Que idéia sinistra de vir em casa. Eu sou uma besta!” No seu pavor, imaginava que a mulher ainda lhe reservava al­guma provocação hedionda. Ensaboando-se, debaixo do chu­veiro, pensava no seu tédio conjugal. Jamais tolerara a mulher fisicamente: não tinha quadris, não tinha curvas, era chata e reta como uma tábua. Ao passo que Engraçadinha, ah! Engraçadinha! Se lhe perguntassem: “Você quer ver Engraçadi­nha nua e, em seguida, morrer?” Diria: “Quero!” Morreria satisfeitíssimo. Depois do banho, passa álcool debaixo do braço e água de colônia pelo peito e pescoço. Seu perfume de velho limpo era célebre no Judiciário.
Sai do banheiro. Vinha, porém, com as suspeitas mais de­sagradáveis. A esposa tirara o vestido e pusera um quimono, digamos, nupcial. A úlcera estava certa. A úlcera era, por ve­zes, profética. Ele calcula, com o coração dando batidas fortes: “O quimono em cima da pele.” Sua infelicidade é total. Pi­garreia:
— Imagine que eu estou com hora marcada...
Sem desfitá-lo, interrompe:
— Você fica.
Recua:
— E o compromisso?
Há, nela, um sorriso muito leve, mas suspeitíssimo:
— Compromisso, olha: compromisso você tem comigo, percebeu? Compromisso que há dois anos você não cumpre e que vai cumprir agora. Agora, sim, agora!
Fala sem agressividade. Mas o marido não se ilude com a ironia quase imperceptível. Não consegue, porém, atinar com as intenções da companheira. E o que o enfurece é a idéia de chegar, em Vaz Lobo, depois da geladeira. Sem uma palavra, a mulher vai fechar a porta do quarto a chave.
Ele balbucia:
— O que é isso?
Volta:
— Estou a sua espera.
Perdeu a paciência:
— Escuta! Eu já disse qual era a situação. Quer que eu faça o quê?
Pergunta com a voz muito leve:
— Você viu aquele filme Les Amants?
— Por quê?
— Viu?
— Les Amants?
A mulher trinca os dentes, ao mesmo tempo que está abrindo o quimono:
— Você quer me descrever aquela cena? Aquela. Des­creve? Aquela cena, descreve a cena. A cena.
O quimono escorregou do corpo sem curvas.

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