segunda-feira, 16 de novembro de 2009

CAPÍTULO LXXV

Quando, finalmente, desvencilhou-se da esposa, era tarde, muito tarde. “Vou chegar depois da geladeira”, eis a certeza que o varava, materialmente. Com asco de si mesmo e da mu­lher — e uma sensação de mácula irremediável — acabou de dar o nó na gravata. Pensava: “Tenho que apanhar outro táxi”. Duzentos e cinqüenta cruzeiros, ou por outra: menos um pouco, porque, desta vez, não iria num Zona Sul.
Disse, na sua cólera contida:
— Já vou.
A esposa vestia novamente o quimono de dragões bor­dados. Sugere, melíflua:
— Não me beija?
Era demais! Pragueja para si mesmo: “Mulher insaciá­vel!” No seu desespero roça com os lábios a face de Hermínia. Pensa: “Ainda faz ares de menina!” E odiou, com todo o res­sentimento de sua humilhação, o filme Les Amants. A mulher veio levá-lo até à porta:
— Vem cedo, ouviu? Vem cedo!
Vira-se, quase chorando (de raiva, chorando de raiva):
— Não sei a que horas venho. Depende. Tenho um jan­tar. Talvez chegue tarde.
Bufava, no elevador: “Essa fita miserável envenenou a imaginação de todo o mundo!” Casais que viviam tranqüilos e consolidados, no seu estável tédio sexual, casais enveredam por experiências abjetas. E não só as senhoras, as mães de família, mas as mocinhas, meninotas, colegiais. Na caça angustiosa de um táxi, geme: “Como é que filmam aquela cena? Como é que deixam?” Ri surdamente, com impiedoso sarcas­mo: “Antigamente, o homem era sórdido na rua.” Mas no lar só admitia o amor convencional, com os seus limites impla­cáveis. “Hoje, não. Hoje, o sexo é tão vil nos alcouces, como em casa.” Põe-se no meio da rua, abre os braços, porque vinha um táxi livre. O carro pára e Dr. Odorico o invade. Já exa­minara o vidro: por coincidência, Zona Norte. Senta-se e berra, aflito:
— Vaz Lobo! Vaz Lobo!
E não lhe sai da cabeça a cena, pouco antes, com a mulher: “Fui humilhado! Ou melhor: violentado! Eu me vio­lentei!” Estava cada vez mais convencido de que era uma ini­qüidade a exibição de Les Amants. O irrisório era o seguinte: a única mulher que, no seu interesse, devia assistir ao filme (Engraçadinha), jamais o faria, por escrúpulos religiosos. Uma esposa protestante impõe a si mesma uma digna e irredutível monotonia sexual. E não admite as fantasias eróticas.

*

Quando viu o caminhão do Rei da Voz, Silene pensou, claro, num engano. Um morenão forte, de peito maciço e beiço largo, pergunta com a voz pesada de Paul Robinson:
— D. Engraçadinha, é aqui?
Atônita, a garota chega ao portão:
— É, sim. O que é que há?
Dois homens do caminhão estão arrancando a geladeira. Silene grita para dentro:
— Mamãe!
Aparece Engraçadinha. O moreno que fala grosso como Paul Robinson diz, simplesmente:
— A geladeira.
Engraçadinha está pálida:
— Mas geladeira?
Mãe e filha entreolham-se. Por um momento, deixam de pensar em Leleco que, naquele momento, devia andar perdido na sua angústia. A própria D. Araci, ao lado, olha com uma espécie de terror o caminhão gigantesco.
Engraçadinha insiste:
— Mas eu não comprei nada!
O Paul Robinson confere a nota de entrega:
— Está aqui: Engraçadinha.
E ela, com o papel na mão:
— Sou eu, mas... Escuta: o senhor tem certeza?
— Olha aqui, minha senhora!
Desorientada, olha para a filha, para Iara, para D. Araci. Volta-se para o barítono:
— Geladeira?
Ao mesmo tempo, Silene abre, de par em par, o portão de ferro. O homem não sabe quem mandou. A vizinhança veio toda espiar. Repete: “Eu não comprei geladeira nenhuma!”
— Da parte de quem?
E, nervosa, vai na frente:
— Põe aqui. Não. Aí, não, aqui. Pode pôr.
Arranja um lugar, entre a sala e a cozinha, perto de uma tomada. Silene, também maravilhada (e com um pouco de an­gústia), sopra para Engraçadinha: “Alguém mandou, mamãe, alguém mandou!” Engraçadinha especulava: “Zózimo não foi. Zózimo não tem onde cair morto!” Era a primeira vez em que, depois de 20 anos de Rio, ganhava uma geladeira. Sonha com água gelada no calor.
Nervosa, indaga:
— E agora?
— É só ligar.
O próprio sujeito pôs-se de cócoras e enfiou na tomada. Em pé, Engraçadinha pensa que uma geladeira nova é linda na sua brancura, digamos, nupcial. Sem consciência do que fazia, acariciou-a. Os homens esperam, em silêncio. Assusta-se:
— Tem que pagar alguma coisa?
Riso largo:
— Gorjetinha.
Ri, também. Subitamente séria, fala:
— Um momento.
Vai até o quarto e apanha a bolsa. Conta o dinheiro: ao todo, 150 mil réis, fora uns quebrados. Silene aparece:
— Mamãe, dá cem.
Balbucia:
— Cem?
Era um baque tremendo. Suspira: “Não pode ser menos?” Decide, com um novo suspiro:
— Cem.
Volta à sala. Entrega os cem cruzeiros. Os homens saem. Por um momento, Silene chega a pensar em Tinhorão. Mas corrige: “Não pode ser. Ele não sabe o nome de mamãe.” Estavam ainda cercando a geladeira, num silêncio deslumbra­do, quando alguém faz da porta, alegremente, a pergunta:
— Já chegou a geladeira?
Voltam-se, atônitas. Era o Dr. Odorico. Entrava, risonho:
— Gostaram?
Pensava: “A única mulher que devia assistir Les Amants era Engraçadinha”.

*

Ao sair do edifício na noite do crime, Bob e Cabeça de Ovo apanharam um lotação na Rua das Laranjeiras. Tinham arrastado o cadáver do Cadelão pelas escadas. Iam deixá-lo entre um andar e outro. Súbito, o Bob que, dos dois, era o pensante, decide: “Olha! para aumentar a confusão, vamos botar numa porta qualquer!” E, assim, arquejantes, fazem mais um esforço. Em seguida, depois de deixar o morto com a ca­beça encostada na porta do 606, desceram às carreiras os seis andares. Só embaixo é que, contidos, caminharam normal­mente. Ninguém os vira. Finalmente, estavam no lotação. Ca­beça de Ovo, mais imprudente e extrovertido, queria falar. Bob dá-lhe com o calcanhar nas canelas. No banco da frente, dois sujeitos conversam. Um deles dizia, com uma ferocidade jucunda:
— O Eduardo Portela. Tem 26 anos. Ou 25. Devia ser um pivete literário. Mas é um Phocion Serpa! Nunca vi um sujeito tão Phocion Serpa como o Eduardo Portela! — e insistia, com exultante certeza: — O Eduardo Portela é um Pedro Calmon nato. É um magnífico reitor!
Essa conversa literária distraiu um pouco o Bob, embora jamais tivesse ouvido falar em Eduardo Portela. O sujeito da frente na sua extroversão ululante prosseguia (os outros pas­sageiros já olhavam):
— O Oto Lara tem razão. Você conhece o Oto? Diz o Oto que, na ficção brasileira, o oceano é um pires de água, que uma formiguinha atravessa a pé.
Os dois literatos saltaram na cidade. Bob e Cabeça de Ovo continuaram até a Leopoldina. Lá, apanharam um táxi para Saenz Peña. O Bob cutuca o outro: “Vamos ao cinema.” Saltam no Olinda. Bob baixa a voz:
— O filme é o nosso álibi, sua besta!
Cabeça de Ovo pasmou para essa inteligência que não esquecia um único detalhe. Ao comprar os ingressos e ao en­trar, Bob bate com o cotovelo no outro: “Olha e ri também.” Explode, então, numa gargalhada feroz, que o fazia torcer-se, dobrar-se. Atônito, e sem entender, Cabeça de Ovo o acom­panha com uma risada bem mais baixa. Lá dentro é que Bob concede a explicação:
— A gargalhada foi outro álibi!
Por sorte, uma família conhecida, que ia entrando tam­bém, fora testemunha casual da falsa alegria. O filme era de mocinho, com tiro, tapa e flecha incendiária. Enquanto os apa­ches guinchavam na tela, Bob pensa no crime.
Depois da sessão, saíram os dois. Bob atravessa a rua. Na praça vira-se para o companheiro:
— Alguém tem que morrer.
— Quem?
E o outro, catando fósforos no bolso:
— O Leleco.
— Leleco?
Bob parte um fósforo entre os dedos:
— É o jeito.
Nesse momento, um rapaz moreno, com cara de nortista, segura o braço de Bob.
— Você é amigo do Cadelão?
Bob vira-se, assombrado. Era o Amado Ribeiro. O re­pórter estava caçando os amigos do morto.

*

Em Vaz Lobo, D. Araci e Iara saem um momento. Pouco depois volta Iara. Chama Silene num canto:
— Escuta! Leleco está na esquina te esperando!

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