sexta-feira, 20 de novembro de 2009

CAPÍTULO LXXIX

Antes de procurar o Leleco, Amado Ribeiro deu um pulo no distrito. Ria, sozinho: “A besta do Piragibe deve estar su­bindo pelas paredes!” Chega lá e a primeira pessoa que viu foi o professor Petruscu. “Eis o assassino!” foi a sua excla­mação interior. Pôs-se a examiná-lo e quase dizia; pôs-se a farejá-lo. O velho (devia ter seus 58, 60 anos) passara a noite em claro, fumando um cigarro atrás do outro. Devia estar com a alma negra de nicotina.
Era rumeno e exagerava como um italiano de anedota:
— Raptaram a minha mulher! Levaram a minha mulher!
Havia no seu olhar, varando a miopia, a cintilação da insônia. O comissário Piragibe também não dormira um único instante. Tinham telefonado até da Presidência. Envolvido pela reportagem, entregara-se a essa tristeza doce, quase bovina do cansaço; não falava mais. Limitava-se a acompanhar com um olhar neutro, meio obtuso, o movimento do professor na de­legacia. Petruscu não se sentara uma única vez. Entrara, ali, às quatro horas da manhã, aos berros: “Minha mulher sumiu!” Na sua imaginação frenética, queria crer que o assassino do Cadelão também a matara e talvez com a mesma arma. E, súbito, ele estaca. Como quem vai puxar uma faca, uma pis­tola, enfia a mão no bolso. Arranca de lá, num gesto violento, um recorte de jornal. A reportagem arremessou-se. O próprio Piragibe espicha o pescoço, num movimento de curiosidade.
O professor lança um suspense:
— Estão vendo isto aqui?
Ergue, bem alto, o recorte. Piragibe põe de lado a fadiga e levanta o peito. Silêncio ávido. Num repelão triunfal, Pe­truscu exulta:
— É do Eurico Nogueira França!
Pasmo do comissário:
— Quem?
Na delegacia apinhada, há o fluxo e refluxo da reporta­gem. Ninguém ali percebeu a relação entre o crime e o nome citado. Eurico, que Eurico? Mas a relação fundamental devia existir. Com a saliva espumando nos dentes, o rumeno explica o mistério do recorte:
— É a crítica, ouviu? Crítica do Eurico Nogueira França sobre o meu concerto. Dei um concerto de violino. Saiu no Correio da Manhã. Com licença, vou ler um trechinho. Olha o que diz o Eurico Nogueira França. Olha. Sobre o meu con­certo. Onde é que está? Ah, está aqui. Um momento, um momento. Diz o seguinte.
O recorte tremia-lhe nas mãos. Pigarreia. Naquele mo­mento, esqueceu a mulher que talvez já fosse cadáver. Era o artista. Na sua mocidade, andara numa falsa orquestra cigana. Desiludido, o comissário Piragibe olhava sem ver, novamente imerso numa meditação ardente e vazia. Amado Ribeiro só faltava cheirar a roupa do músico. Petruscu estava tão exci­tado (mordia-se de vaidade) que precisou segurar o papel com as duas mãos. Leu a metade e concluiu assim:
“... uma Fuga, ou um Fugato, um Fugato desenvolvido de um interesse empolgante.”
O auditório estava numa dessas incompreensões totais. A princípio, julgou-se que Eurico Nogueira França estaria im­plicado. Ainda ofegante, Petruscu dobra e guarda o recorte no bolso. O Silva Júnior, da Luta, faz a pergunta atônita:
— E daí?
Explica:
— Eu fiz questão de ler. Um momento, um momento! Eu quis mostrar que eu não sou nenhum pé-rapado. Quando o Eurico Nogueira França, o Eurico entende. É formado, ah é! Mas onde é que eu estava? Ah, sim! Eu cheguei aqui no distrito e devia ser bem tratado. Minha mulher desaparece e eu sou maltratado. Afinal, eu não sou nenhum joão-ninguém. Na minha terra, o artista, ah, sim, lá consideram muito o ar­tista! E eu disse ao comissário: “Senhor comissário, querendo telefona para o Eurico Nogueira França, que me conhece, sabe quem eu sou. O senhor telefona!”
Piragibe rosna:
— Escuta, oh professor! Não enche! Você já está en­chendo. Vai ver se eu estou na esquina.
Então, na frente de todo o mundo, o professor começa a chorar. Vê o Amado Ribeiro e atraca-se com o repórter:
— Quem sabe se a minha mulher está morta? Desapa­receu, entende? Eu saí para visitar um amigo. Volto e não encontro mais a minha mulher. Sumiu. Vim aqui e...
Amado leva-o para um canto:
— Escuta aqui. Vem cá. Que negócio é esse? Tenho uma bomba pra ti.
O outro cicia: “Bomba?” E o repórter:
— Olha. Esse negócio do Eurico Nogueira França é despistamento, máscara, percebeu? É show!
O sujeito torce a cara, como se não tivesse escutado:
— Como? Como? Despistamento?
E o outro, baixo e incisivo:
— Foi você que matou o Cadelão! Você! O assassino é você!
Estupefato, com o lábio branco, Petruscu não diz uma palavra. Amado Ribeiro deixa a delegacia. Mais adiante apa­nha o jipe:
— Real Grandeza.
Ia espiar o velório do Cadelão. Foi pensando pelo ca­minho: “O professor não matou ninguém.”

*

Dr. Odorico chega em casa tarde da noite. Enfia a chave na fechadura e calculava, no seu otimismo: “Minha mulher deve estar dormindo. Tomara.” Mas ao entrar tem a surpresa: ela o esperava, com O Cruzeiro no regaço. Com uma aguda contrariedade, pragueja: “E mais essa!” Faz a pergunta inútil:
— Acordada?
Suspira:
— Sem sono.
Sorri para ele. Ergue-se (veste o quimono de dragões bordados). Parado, no meio da sala, Dr. Odorico experimenta uma raiva brusca, uma espécie de ódio. Como todo o tímido, tinha, excepcionalmente, as suas cóleras totais. Já começavam as palpitações da úlcera. Pensa: “Minha mulher que não se faça de tola, porque, eu, bom!” Ela caminhava, lentamente, na sua direção. Estendia-lhe as duas mãos e sorria-lhe, com um olhar turvo de volúpia.
Disse:
— Você não acha interessante?
E ele:
— Não entendi.
Novo suspiro:
— Estamos casados há vinte anos. Vinte anos! Mas acho que a nossa lua-de-mel começou hoje, de tarde.
Esse carinho não desejado exasperou-o. Disse para si mesmo: “Ah, não! É demais! E onde é que nós estamos?” Geralmente, nas maiores irritações, conseguia manter um mí­nimo de polidez. Mas a insistência da esposa acabou de en­furecê-lo.
Falou, duramente:
— Escuta. Vamos conversar. Senta.
Ele ficou de pé. Queria valorizar e, mesmo, dramatizar o que ia dizer. Inquieta e surpresa, Hermínia senta-se. Em vinte anos de casados, Dr. Odorico foi, pela primeira vez, im­placável:
— Aconteceu, hoje, de tarde, uma coisa que não devia acontecer. Sim, uma coisa que não podia acontecer.
Atônita, balbucia:
— E o que é que não podia acontecer?
Virou-se, vivamente:
— Ora, minha mulher! Eu não posso falar português claro! Num casal, deve haver respeito acima de tudo: respeito.
Levantou-se:
— Você está arrependido?
E ele:
— Arrependido, propriamente, não. Não se trata de arre­pendimento. Escuta: eu não fiz por gosto. Eu fui tomado de surpresa. E se há um culpado, entre nós dois, desculpe, mas é você.
— Eu?
Continua, enfático:
— Sim, senhora! A insinuação clara, mas evidente, par­tiu de você. De momento, não me ocorreu que... Minha mu­lher, senta e escuta. Senta.
Obedeceu, desorientada. Ele tira o lenço e enxuga os lá­bios. Inflama-se, guardando o lenço:
— Um casal vive de respeito mútuo, E quando não há esse respeito acaba tudo. De mais a mais, escuta, minha mu­lher, escuta: de mais a mais, um homem não pode trazer para a casa, para o lar, a miséria dos alcouces. E o que aconteceu, esta tarde, foi uma abjeção.
Ergue-se, fora de si:
— Amor!
— Uma abjeção que teria seu lugar próprio num alcouce.
Desafiou o marido: “Isso é demagogia!”, Dr. Odorico, porém, foi até o fim (transpirava):
— Demagogia, não, senhora! E outra coisa. Minha mu­lher, escuta, deixa eu falar. Vocês, mulheres, gostam muito de interromper. Mas escuta: antigamente, a esposa tinha um certo comportamento sexual. Era isso que a caracterizava. Eram os seus limites! Agora, não! Ela quer uma liberdade carnal que a põe — note bem! — que a põe no mesmo nível das va­gabundas.
Rápida, a mulher o segura pelo colete: “Me chamou de vagabunda?” O ódio a desfigura. O marido desprende-se:
— Tira a mão, mulher! Ouve o resto. Tenha a segurança de que não mais acontecerá a miséria que hoje manchou esta casa. Você é esposa! Comporte-se como tal! A esposa tem limites implacáveis! Perfeitamente! Limites implacáveis!
Berrou:
— Desgraçado!

*

Quando Amado chegou em Real Grandeza, a rua estava inundada de carros. Vinham automóveis daqui, dali, e, no cru­zamento, havia um espasmo de tráfego. As buzinas esganiçadas faziam, ali, uma insuportável angústia auditiva. Amado Ribeiro ia esbarrando nas coroas de luxo. Lá dentro, só via as grandes figuras, inclusive gente do Palácio. Queria entrar na câmara ardente. Atrás de si, alguém cochichava:
— Olha o mulherio. Só dá busto artificial. Vivemos uma época sem seios.
Viu, lá, o caixão. Aproxima-se, projetando a cara. Con­templa o assassinado. Cadelão jamais fora tão belo, com o perfil diáfano e gelado que os mortos têm. Nos lábios entreabertos, esse mínimo de ironia que se nota na boca de certas máscaras mortuárias. Pouco antes, ocorrera um incidente penosíssimo. Um repórter perguntara a alguém: “Quem é o pai do Cadelão?” Por infelicidade, o velho, que andava por perto, ouvira. Pôs-se a berrar, a dois passos do ataúde:
— Cadelão é um tiro na boca!
Alguém teve de segurá-lo: “Não faça isso!” Era um mi­nistro de Estado que o continha.

*

Desde o primeiro momento, Amado Ribeiro sentiu a fra­gilidade pânica de Leleco. “Não agüenta dois trancos!” Era bem o ser que chora da trovoada. Não havia ninguém por perto. Junto à parede, o repórter o sacudiu duas ou três vezes. O rapaz soluça:
— Eu não matei! Eu não sou assassino!
Foi nesse momento que veio alguém e agride, pelas costas, o repórter.

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