quinta-feira, 19 de novembro de 2009

CAPÍTULO LXXVIII

Na véspera, Amado Ribeiro fora quase agredido, na porta do Carioca. Bob chegou a abrir a mão para a bofetada:
— Te dou um tapa!
O repórter pula para trás:
— Tira a mão e calma, calminha!
Por cima do ombro do amigo, o Cabeça de Ovo estrebucha:
— Palhaço!
O descaro de Amado Ribeiro era empolgante:
— Rapaz, escuta! Escuta! Posso falar? Mas escuta! Olha: ninguém bate na imprensa! Escuta, oh Senhor! Sou eu que estou falando! Se a gente briga aqui, vocês estão em cana e aí ‘como é que é? Eu, olha: me soltam no mesmo instante e você?
Os dois se entreolham. Cabeça de Ovo tem, novamente, a náusea do medo. (Sua vontade é correr, pular um muro, outro, depois outro, sumir.) Rapazes da Praça já se aproxi­mavam. O próprio Bob está menos seguro e com um princípio de angústia. Com o seu persuasivo, irresistível cinismo profis­sional, Amado baixa a voz:
— Vamos entrar aí num lugar. Ali. Vamos lá. Vamos.
O próprio Bob dá a idéia:
— No Prato do Dia.
Pouco depois, entram lá e ocupam uma mesa dos fundos. Outra vez, por uma dessas inspirações gratuitas e irresponsá­veis, Amado Ribeiro solta a mentira de efeito: “Eu sou neto de índio, compreendeu? Neto de índio!” Dir-se-ia que esse falso parentesco dava-lhe um certo charme, uma espécie de magia. Depois de pedir uma pizza média (sem aliche), o Amado Ri­beiro dispara a falar, baixo e sôfrego.
— Vamos conversar direitinho. Em primeiro lugar...
Bob interrompe: “Olha que eu não confessei nada!” e pluraliza: “Não confessamos nadinha!” O repórter admite: “Claro! Claro!” Continua, alargando o colarinho:
— Mas como eu ia dizendo: no Brasil, é a imprensa quem descobre os crimes. A imprensa, compreendeu? É pre­ciso estar bem com o jornal. O resto não interessa. E, além disso, presta atenção: eu posso ajudar vocês pra burro. E vocês também podem me ajudar. Elas por elas e uma mão lava outra.
Bob cata um cigarro:
— Eu não sei de nada. E se soubesse, olha: se soubesse não diria.
Vem o garçom com a pizza e o Amado Ribeiro pula:
— Vem cá, oh meu chapa! Chega aqui um instante! Es­cuta: eu pedi sem aliche. Rapaz, pedi sem aliche! Volte. Leva, não quero. É o Brasil. Traz sem aliche. Por favor. Obrigado. É o Brasil.
O garçom leva o prato. Amado Ribeiro dramatiza: “Está vendo o que é o Brasil? Eu pedi sem aliche!” Em seguida, volta ao crime:
— Bom. O negócio é o seguinte: vocês não têm nada com o peixe, não mataram ninguém. Entendidos?
Cabeça de Ovo ia responder, mas Bob atalha, brutal­mente:
— Não dá palpite, não te mete, ora que mania! Deixa que eu respondo! — desafia o repórter: — E daí?
Amado Ribeiro está comendo azeitona. De vez em quan­do, baixa a cabeça para cuspir no pires o caroço. Faz a per­gunta, à queima-roupa:
— Quem matou o Cadelão?
Responderam, ao mesmo tempo:
— Leleco!
Amado apanha outra azeitona, ao mesmo tempo que ex­pele o caroço da anterior. Sem valorizar a própria curiosidade, indaga:
— Por que Leleco?
Bob enfia também o palito numa azeitona. Diz:
— Paixão.
O garçom vinha chegando. Amado exulta duplamente — pela pizza sem aliche e pela natureza do crime. Aprendera na reportagem que a pederastia pobre não dá nada. Mas o Cadelão era de uma das melhores famílias. Cortando a pizza ele já imagina, de olho rútilo e boca ávida: “Vai ser um estouro!” Insiste:
— Mas paixão de quem por quem?
Bob vai contando:
— O Cadelão achava que o Leleco... Você conhece o Leleco? Ah, não conhece. Pois o Leleco é um sujeito nessas condições: quando houve aquela trovoada que encheu a Praça da Bandeira, o Leleco teve ataques. Chorava que eu fiquei besta. Por causa de uma trovoada. Dos dois, o Cadelão é que era o homem.
— E o motivo? Deve ter havido. Um motivo. Qual?
Respondeu:
— Ciúme. Ou Leleco teve ciúme do Cadelão ou Cadelão do Leleco. Um dos dois.

*

No dia seguinte, tarde da noite, Dr. Odorico falava no telefone com o Wilson Figueiredo. O Wilson insistia:
— Faz o seguinte: leva à rapariga a chave de ouro.
— Levo. Que mais?
Continua:
— Diz que está fazendo um soneto de trás para diante. Ah, um momento! Um momentinho! Deixa eu falar aqui. — fala para uma pessoa da redação. — Põe isso na mesa do Hermano! Pode falar, Meritíssimo! Ah, sim! Mas compreendeu? Cada dia o senhor leva um verso do soneto do Oto...
Dr. Odorico interrompe:
— Escuta, Wilson! Está certo. Mulher gosta de novidade, tal e coisa.
Wilson berra:
— A pequena vai delirar!
— E quem faz o resto do soneto? Quem? Para amanhã, já estou com a chave de ouro. Aliás, Wilson, dá tua opinião: você não acha meio forte o soneto do Oto? Fala em cama. E outra coisa: esse negócio de ‘corpo lasso’. A pessoa, inclu­sive, é protestante, Wilson, protestante.
Ao lado do Wilson, na redação, o Hermano Alves arrasa um graúdo: “Uma inteligência de Brucutu, numa cabeça de Splenger.” Wilson quer despedir, fraternalmente, o juiz:
— Escuta, Meritíssimo. Vai me desculpar, mas é que, olha: estou com matéria pra burro em cima da mesa. Tenho que mandar pra oficina.
Aflito, Dr. Odorico geme:
— Quer dizer que eu devo mostrar? Você acha? Posso deixar a cama? Não faz mal? Realmente, se eu tirar a cama, o que é que sobra da chave de ouro? De fato, muito bonito o soneto do Oto. Escuta, Wilson, e você acha mesmo, dá um palpite, que ela vai gostar?
O Wilson dá todas as garantias:
— Meritíssimo, pode entregar sem susto. Eu faço o resto do soneto. Até amanhã, Meritíssimo. Telefona amanhã. Tchau.
Só depois de desligar é que o Dr. Odorico bate cabeça: “Oh, diabo! Não falei do Tinhorão! Me esqueci do Tinhorão!” Respira fundo: “Falo amanhã!” Cumprimenta o homem da caixa:
— Passar bem.
O soneto do Oto, que levava no bolso, deu-lhe a sensação de uma arma.

*

Uns dez minutos depois de ter saído Dr. Odorico, Zózimo vira-se para Engraçadinha:
— Tive uma idéia! Uma big idéia!
Vestia já a camisa rubro-negra sem mangas. Entre pa­rênteses, fazia um calor bárbaro. E ele, rondando a geladeira, tinha um encanto de menino. Depois de Engraçadinha, era quem gostara mais do presente. Disse, doutorai, apontando com o dedo:
— A geladeira não deve ficar ali.
Engraçadinha não entende. Zózimo esfrega as mãos:
— A geladeira é o principal móvel do pobre.
Durval pula:
— Mas oh, papai, essa não, que é que há?
Engraçadinha ralha:
— Deixa teu pai falar. Vocês não deixam seu pai falar!
Zózimo inflama-se:
— Escuta. Engraçadinha, vê se eu não tenho razão. Dur­val, primeiro falo eu e depois você. Escuta, meu filho: a ge­ladeira deve ficar na sala. Mas evidente! Em casa de pobre, a geladeira deve ficar na sala, compreendeu? Na sala!
Engraçadinha diz, rapidamente:
— Também acho.
Durval levanta-se. Enfia as duas mãos nos bolsos, anda de um lado para outro:
— Esse negócio de geladeira não me entra. Afinal de contas, eu não entendo. Por que é que esse cara...
— Cara? Que cara?
Faz uma boca de nojo:
— Esse juiz! Sim, esse Dr. Odorico! Dá um presente. Papai, geladeira custa dinheiro. E eu pergunto. Sim, tenho di­reito de perguntar: por quê?
Zózimo põe as mãos na cabeça: “Meu filho, não seja espírito de porco!” Engraçadinha empertiga-se:
— Olha, Durval, você às vezes fala sem pensar. E nem deve chamar de ‘cara’. Imaginem! Chama de ‘cara’ um velho amigo. Amigo de Vitória, lá do Espírito Santo. Você nem ti­nha nascido e o Dr. Odorico...
Durval quebra entre os dedos um palito de fósforo:
— Mamãe, se a vizinhança sabe...
A mãe exaltou-se:
— Cala a boca! Estou falando e você me interrompe? — muda de tom: — O Dr. Odorico devia muitos favores a seu avô. Essa geladeira é uma retribuição. É fato ou não é Zózimo? Diz pra teu filho. Minto?
O outro respondeu: “Velho amigo!” Ele, Zózimo, conti­nuava numa tremenda felicidade. A geladeira, ali, era uma presença viva, palpitante, encantada. Há uma pausa. E, então, erguendo a fronte, com certo fervor, Engraçadinha fala:
— E outra coisa, que te sirva de lição: sua mãe não fará nada que uma esposa não possa fazer.

*

Só quando fechou o Ao Prato do Dia é que Amado Ri­beiro deixou Bob e Cabeça de Ovo. Durante uma hora de conversa, repetira várias vezes: “Eu sou neto de índio!” Apren­dera que essa mentira fazia um efeito inexplicável, mas alta­mente eficaz. Antes de sair, baixou a voz: “Somos aliados!” Foi apanhar o jipe na esquina da Granado e berra para o chofer:
— Paineiras.
Antes de voltar ao jornal, para escrever a reportagem, contava passar duas horas de amor, num clima de montanha. E, ao mesmo tempo, pensava nesse crime marcado pelo homossexualismo. Conhecia a força social, política e econômica de certas pederastias brasileiras. Na montanha, passou uma hora ao lado de Maria Aparecida. Saiu, numa euforia tre­menda:
— Que corpo, menino, que corpo!
Fez a matéria no jornal. Durante o dia só trabalhou no crime. (Passou no enterro do Cadelão.) E, por fim, já de noite, esperou Leleco. Viu o rapaz e o abotoou:
— Você é o assassino!
Leleco faz uma cara de choro:
— Não! Não! Eu não matei! Juro!

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