sábado, 21 de novembro de 2009

CAPÍTULO LXXX

Era Silene. Trazia um recado de Engraçadinha para D. Araci. De longe, vira um sujeito batendo em Leleco. Correra, fora de si. E, agora, agredia, pelas costas, o desconhecido, com tapas de suas mãos leves e frenéticas:
— Larga Leleco! Larga!
O repórter vira-se, e tão rapidamente que ia perdendo o equilíbrio. Agarra, solidamente, a menina pelos dois pulsos:
— Quieta! Quietinha!
Levou dois ou três pontapés na canela. Leleco teve que se atirar entre os dois:
— Da polícia, Silene! Polícia!
E, então, atônita, a menina já não se debate mais. Respira forte e fixa Amado Ribeiro com o seu olhar de espanto e medo. Na casa ao lado, alguém abre o rádio em todo o volume. Leleco arqueja:
— Minha noiva.
A menina, transida, faz a pergunta:
— O senhor é da polícia?
Amado Ribeiro olha um e outro. Acaba achando graça:
— Menina, não faça mais isso. Você podia se dar mal. Olha que eu já vi a polícia chutar a barriga de muita mulher grávida. E se eu te enfiasse a mão, agora? Hem, se te enfiasse a mão?
Leleco fala quase sem voz:
— O senhor não vai fazer isso. Silene, pede desculpas. Pede, Silene, pede.
Silene faz uma mesura:
— O senhor me desculpe.
Numa falsa ferocidade, Amado Ribeiro agarra o braço de Leleco:
— Escuta, meu chapa, chega de conversa! Vai ou não vomitar? Sei tudo! O Bob e o Cabeça de Ovo...
Gemeu:
— Bob?
E o repórter:
— Pois é. O Bob e o Cabeça de Ovo. Contaram tudo. O assassino é você.
Silene agarra-se ao repórter:
— Mentira! Leleco não matou!
O métier dera a Amado Ribeiro uma dessas vidências lím­pidas e implacáveis. Julgava sentir, instantaneamente, num pri­meiro olhar, a culpa ou a inocência. “Dois anjinhos!” era o que pensava. Concluía, com uma certeza total: “Mas ele ma­tou!” Empurra brutalmente a pequena, ao mesmo tempo que faz o comentário interior: “Nessa, eu começava pelo dedo do pé.”
Baixa a voz:
— Escuta você, e ela também: ou você confessa ou... Foi você?
Olha Silene e responde:
— Não.
Amado Ribeiro parece decidido:
— Ah, não confessa? Não quer confessar? Os dois estão em cana! Vamos embora!
Põe a mão no braço do repórter:
— Ela, não!
Amado repete:
— Ela, sim! Olha aqui, seu animal! Ou você confessa. Acho bom você confessar. Mas, ou você confessa ou sabe o que é que vai acontecer? Escuta. Deixa eu falar. Nessas oca­siões, a polícia faz o seguinte: prende a mãe, a mulher, a irmã do cara. Vai escutando. Põe a mãe, a mulher e a irmã do cara nuas. Uma das piadas mais inofensivas é queimar o seio de cada uma com brasa de cigarro.
No seu desespero, balbucia:
— Minha mãe?
E o outro, duro:
— Tua mãe. E essa pequena. Nuas. Na tua frente e na frente de todo o mundo. Queres? Responde: quem matou Cadelão?
Ergue o rosto:
— Eu.
Silêncio. E, então, Silene agarra-se ao repórter:
— Ele matou porque... O senhor não sabe? Queriam que ele fosse mulher de três! O senhor não acha que... Foi por isso! Não foi, Leleco? Diz pra ele! Não foi por isso?
Todo o seu desespero passara. Disse, com o olhar perdido:
— Eu matei Cadelão. Matei. Levei uma gravata. Matei com um canivete americano. Agora me prenda. Prenda. Pode me prender. Mas não leve nem mamãe, nem Silene, nem Iara. Já confessei. Pronto.
Amado passa na boca as costas da mão:
— Agora, meu chapa, que você já confessou, dê graças a Deus pelo seguinte: eu não sou da polícia, entende? Não sou da polícia. E olha: você deu uma bobeada, rapaz!
Num deslumbramento, Silene repetiu:
— Não é da polícia?
Amado pôs-lhe a mão no ombro:
— Deu bobeada porque você parece maluco. Então, o primeiro que chega você abre o bico? Você não matou nin­guém. Pra todos os efeitos, você não matou ninguém. E outra coisa: você está na minha mão. Só vai fazer o que eu disser.

*

Há quatro dias que, todas as manhãs, Dr. Odorico telefo­nava para o juiz-substituto: “Agüenta a mão que hoje eu não posso ir.” O outro, que era um grave, baixava a voz pesada, e como que mugia no telefone: “Que tal a pequena? Justifica?” Dr. Odorico fazia-se de vago: “Serve.” Não estava com cabeça, nem coração para resistir ao tédio das audiências. (Todo o Judi­ciário já sabia da paixão.)
Destratado pela mulher, chamou-a de “minha senhora”:
— Será que as mulheres só pensam em sexo?
Esganiçou a voz:
— Eu tenho doze anos menos que você!
Dr. Odorico olha para trás, no pânico súbito da vizinhan­ça: “Fala baixo!” Reagiu, violenta: “Estou na minha casa!” Com a úlcera em espasmos, ele imaginava que, no dia seguinte, todo o edifício estaria comentando, com um sarcasmo triunfan­te, a sua intimidade sexual. E, naquele momento, o fato de ter no bolso o soneto do Oto Lara (ou, pelo menos, a chave de ouro) serviu-lhe de uma espécie de sedativo. “E entrego o corpo lasso à cama fria”, era o verso escasso e único. Como completar o soneto? Se o Wilson Figueiredo lhe faltasse, teria de recorrer ao Luís Costa, outro lírico da cabeça aos sapatos. Discutindo com a mulher, ele passara 15 minutos sem pensar na geladeira. “Não pago uma única prestação”, disse para si mesmo.
A mulher fez-lhe a pergunta:
— Escuta, Odorico: você quer se separar?
Diz, sôfrego:
— Quero!
Fez a volta da sala, repetindo (numa alegria feroz, que procurava disfarçar):
— É a solução! Graças a Deus, não temos filhos pra atra­palhar. É a solução!
Hermínia não diz nada. Ele acaba espantado com o silên­cio da esposa. Vira-se, inquieto. A mulher perdera toda a agres­sividade. Perguntou:
— Você teria coragem, Odorico? Depois de 20 anos de casado, você teria... Fala! Você quer se separar de mim? Você não gosta mais de mim?
O juiz ia dar uma resposta impiedosa. Súbito, a mulher abre os braços e cai de joelhos. Aterrado, ele não fez um gesto quando a viu mergulhar o rosto nas duas mãos e soluçar com uma violência monstruosa. A úlcera, no duodeno, parecia dar pinotes. E o juiz não entendia mais nada. A incoerência daquelas lágrimas deixava-o confuso e dilacerado. “Foi ela que quis, que propôs”, era o seu espanto. Fala, afinal:
— Mas, levanta! Levanta!
Não era homem de ver ninguém chorar, muito menos uma mulher, e menos ainda a mulher que vivera a seu lado vinte anos. Podia ser uma víbora africana e era uma víbora africana. (Mas as víboras também são filhas de Deus. Que culpa tem uma lacraia de ser uma lacraia, se foi esta a sua involuntária forma terrena? E por que uma víbora não há de ser amada?) Ajudou-a a levantar-se. Já lhe parecia que uma mulher que chora assim, com tão fundo gemido, não será uma lacraia total.
Foi tão desesperadora a sua pena que se inclinou com um pouco de amor. Ela ainda estava fora de si:
— Eu não me separo, nem dou desquite! E se você deixar a casa...
Quis atalhar: “Escuta, meu bem!” Ela, porém, insistia, numa alucinação: “Se você me abandonar, antes das bodas de prata... Nós temos 20 anos de casados. Mas se você me aban­donar antes eu me atiro daquela janela.” Completou, violenta: “Se quiser, abandona, mas depois de 25 anos e espera comple­tar 25 anos!” O juiz surpreendeu-se a passar a mão pela cabeça da mulher:
— Não quero me separar. Você é que... Ou você pensa que é agradável para mim confessar que estou incapaz? Eu falei porque quis ser leal contigo...
Abraça-se ao marido (sua dor é mansa, quase terna):
— Eu não ligo pra sexo, não dou bola, juro. O que eu quero é fazer as bodas de prata...
Dr. Odorico deixa-se abraçar. Tem ainda mais compaixão porque ela é feia, sem curvas. “Pode-se tratar a pontapés uma esposa bonita.” Mas a dele era tão sem atrativos que, se qui­sesse trair, prevaricar, encontraria as dificuldades mais humi­lhantes. Finalmente, ele a levou para o quarto. Lembrou-se do que dissera, certa vez, o Oto Lara: “Não se abandona nem uma namorada.” Ao mesmo tempo, pensava em Engraçadinha. Decide: “Se o Wilson Figueiredo não completar o soneto do Oto Lara, vou recorrer ao Luís Costa.”
Sentiu-se gelar de dó quando viu a esposa repetir, com dilacerada humildade:
— Meu anjo, esse negócio de sexo eu nem ligo e tanto faz. O que eu quero é você. Boa-noite.
Dr. Odorico teve vontade de apanhar as suas mãos e beijar uma e outra. Depois de mudar a roupa e apagar a luz, repetiu para si mesmo, ainda uma vez: “Não pago um tostão da ge­ladeira!”

*

No dia seguinte, Amado Ribeiro atirava na cara do leitor a manchete:
“PETRUSCU, O ASSASSINO DE CADELÃO!”

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