terça-feira, 17 de novembro de 2009

CAPÍTULO LXXVI

Engraçadinha veio, ao seu encontro, com um olhar va­rado de luz:
— Foi você?
Com uma brusca vontade de chorar, Dr. Odorico não res­pondeu imediatamente. Vivia um desses momentos de alegria tumultuosa e sufocante. Sentiu realmente uma certa falta de ar e, por um momento, considerou a hipótese: “Imagine, eu tendo aqui um enfarte!” Engraçadinha estava diante dele e com um rosto tão próximo (oh, mulher bonita!) que o juiz via o beicinho vibrante.
Repetia, transfigurada:
— Foi você?
Dr. Odorico sorria vermelho. Que pena ter 52 anos (52!) e não 48 anos como vivia proclamando. E não perdoava à esposa o ter-lhe esfregado na cara a verdadeira idade. No momento em que começava a amar, sentia-se espoliado em quatro anos de vida sexual. A partir dos 40, a vida é uma luta corpo a corpo com o tempo. Um quarto de hora faz falta! Mas Engraçadinha queria saber se tinha sido ele.
Teve de admitir, feliz:
— Parece.
E sentia, em todo o ser, um dilaceramento inefável. Na­quele instante, a úlcera não podia faltar com as suas palpitações. Lá estava ela ativa, frenética como nunca. Com os olhos cheios de lágrimas, Engraçadinha balbuciou:
— Por que fez isso?
D. Araci, Iara e Silene estavam ali, a dois passos de am­bos. Mas o juiz sentiu como se ele e Engraçadinha fossem o único casal da Terra. Curvando-se para a mulher amada, o juiz pensa em um soneto que lera, há anos, não sabia onde. Um dos versos era mais ou menos assim: “Teus pés frios soam como idílios!” O poeta (salvo erro) chamava-se Ledo Ivo. E súbito, teve a certeza: exato, Ledo Ivo, o poeta chama-se Ledo Ivo! Repetiu, mentalmente: “Teus pés frios soam como idí­lios!” Aquilo pareceu-lhe de uma beleza total.
Pergunta:
— Não gostou?
E ela:
— Demais!
Silene aproxima-se:
— Eu não disse, mamãe, que era alguém conhecido?
O juiz vira-se para a menina. Parecia-lhe incrível que uma garota de 14 anos (14 anos!) deixasse de ser virgem com aquela frívola naturalidade. Amargurou-o que a filha de En­graçadinha fosse amoral, irresponsável como um bichinho de avenca ou como a própria avenca. Sempre com o verso do Ledo Ivo na cabeça, baixa a voz:
— O Natal está próximo e eu resolvi dar um presente à família.
Perturbada, tem uma mesura de mocinha:
— Agradecida:
Ele, com a úlcera mais calma, uma cintilação no olhar, exulta:
— Está funcionando bem?
— Quer ver?
Diz, esfregando as mãos, radiante:
— Vamos lá.
D. Araci põe a mão no braço de Engraçadinha:
— Olha, já vou.
— Já?
Suspira:
— Leleco pode chegar e... Quer dizer que está combi­nado?
— Por uns dias.
— Deus te pague. Depois passo por aqui.
— Passa.
Silene vai acompanhá-las até o portão. Diante da gela­deira, Dr. Odorico murmura:
— Olha! É pra ti e só pra ti — e sublinha, com certa e desnecessária agressividade: — Pra mais ninguém.
Essa confissão cochichada o deixa arquejante. Engraça­dinha ergue o rosto; a surpresa dá-lhe um rubor delicioso. (Aliás, surpresa em termos. Ela só podia deduzir que era sua a exclusividade da homenagem.)
Balbucia, com involuntária afetação:
— Não precisava se incomodar...
Dr. Odorico fala tumultuosamente:
— Você merece muito mais! — pausa e completa: — Você merece tudo!
Enquanto Engraçadinha abre as portas da catedral bran­ca, o juiz repete, mentalmente: “Teus pés frios soam como idílios!” Precisava descobrir o resto do soneto. O Wilson Fi­gueiredo talvez conhecesse o Ledo Ivo. Imagina: “O Wilson Figueiredo conhece todo o mundo!” Aberta a porta, uma luz a um tempo macia e espectral rompe da geladeira.
O juiz murmura:
— Bonito!
E ela, num sopro de voz:
— Uma beleza!
Vem, lá de dentro, um sopro gelado. E, naquele mo­mento, lado a lado com o seu amor, Dr. Odorico experimenta uma certa comichão parnasiana. Na sua mocidade, rabiscara os seus versinhos, seguindo a linha de um poeta então em voga, o Raul Machado. Mas, em seguida, fazendo sua carreira, esterilizara-se da maneira mais irremediável e deprimente. Agora, pensava, numa amarga autocrítica: “Eu também já fui inteligente.” E repetia, numa inconsolável nostalgia: “Também já fui um Oto Lara Resende. Mas o Judiciário empalha qual­quer um. Nós, juizes, somos empalhados!”
Com uma tristeza sem motivo, Engraçadinha empurra a porta. Ele a olha na boca que se entreabre num sorriso muito leve. Por um momento, a tentação de beijá-la, ali, junto à geladeira, foi delirante.
Engraçadinha vira-se:
— É mesmo! E o Tinhorão?

*

Quando Iara veio chamá-la, Silene vacila:
— O diabo é que mamãe não quer que eu saia. Espera! Volto já!
Iara fica no portão, enquanto Silene sobe a pequena es­cada e entra na sala. Mente para Engraçadinha:
— Mamãe, está na hora da Ema Dávila. Vou ver, sim?
Volta. Engraçadinha teve de explicar ao Dr. Odorico que se tratava da Ema Dávila, da TV. Lá, na rua, gostavam muito. O juiz concluía: “Não convém beijar agora. Ela pode ligar as duas coisas, a audácia e a geladeira. É melhor esperar.” E disse, com a úlcera em fogo:
— Eu prometo, Engraçadinha, prometo que nessas 48 horas. 48 ou, no máximo, 72. 48. Nesses dois dias, resolvo o caso de Tinhorão. Já localizei o bicho e eu resolvo, pode crer: — eu resolvo.

*

Na véspera, Amado Ribeiro não perdera tempo. Levara Maria Aparecida a Paineiras. Em seguida, passou de novo na Rua General Glicério. O ‘cachorrinho presidencial’ ganha mais uma cédula e cochicha: “O Cadelão andava muito com o Bob e o Cabeça de Ovo, da Praça Saenz Peña.” Amado Ribeiro toma o jipe e comanda:
— Voa pra Tijuca!
O jipe vara o tráfego. Na Praça, Amado salta e manda o carro desaparecer. Encontra o guarda 1.081, na esquina do Carioca. Havia entre o policial e o repórter um vínculo eficacíssimo. Meses atrás, Amado conseguira a transferência do 1.081, da Penha para a Tijuca. Foi o vigilante que, pouco depois, sopra: “Olha o Bob e o Cabeça de Ovo!” Amado Ri­beiro não perde tempo. Adianta-se e põe a mão no Bob:
— É você mesmo!
Vira-se, pálido:
— Que piada é essa?
E o Amado com um esgar de ‘tira’:
— Pode abrir o livro! Você fechou o Cadelão!
Ao lado, lívido, a vontade do Cabeça de Ovo é correr. Bob tem uma ginga insolente (recuperou-se):
— Comigo você tomou bonde errado!
O repórter espeta-lhe o dedo no peito:
— Escuta, ó meu chapa! Chega de conversa e vai logo vomitando!
Então, o Cabeça de Ovo, recuando ligeiramente, balbucia:
— Eu não fui! — e completa, quase chorando: — Eu só ajudei a carregar o corpo!
Bob pula:
— Seu cretino!
Rápido e exultante, Amado Ribeiro segura o rapaz pelo cinto:
— Como é? Quem foi? Diz ou te meto no pau-de-arara!
Cabeça de Ovo vira-se para o Bob: “Mas não fomos nós!” E estende a mão crispada para o repórter:
— Foi o Leleco! — e aperta o braço do Bob: — Não foi o Leleco?
Desesperado, Bob desafia o repórter: “Se você é da po­lícia, vamos ao distrito, pronto, vamos ao distrito. Ou, então, mostra os documentos!”
Súbito, o Amado Ribeiro deixa de falar e gingar como ‘tira’. Tem um riso interno, que o sacode:
— Meu chapa, eu sou da imprensa!
Cabeça de Ovo soluça:
— Não é da polícia? Você é da...
Seu medo é agora ódio. Chega a avançar para o repórter. Bob com os olhos estrábicos de raiva segura o Amado:
— Vou te quebrar, vou...

*

Leleco esperava Silene na dobra da esquina. Vira-se para Iara: “Cai fora!” Puxa a namorada:
— Chega aqui... Vem.
E ela, caminhando a seu lado:
— Você matou, hem, matou?
Param mais adiante. Silene olha, espantada, para o rapaz. Leleco fala por entre lágrimas:
— Escuta, eu vim aqui, porque... — pausa e continua: — Silene, eu matei um homem, mas olha: eu tive razão, juro. Pela vida de minha mãe, que é a coisa que mais prezo...
Silene crispa-se, numa espécie de náusea:
— Matou?
Ele a segura pelo braço:
— Ou você morre comigo ou eu me mato sozinho...

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