quarta-feira, 18 de novembro de 2009

CAPÍTULO LXXVII

Dr. Odorico fez questão de esperar que chegassem todos os membros da família. Queria saborear até o fim, como quem chupa um sorvete de pauzinho, a alegria da família. E coisa curiosa! Aquela era uma rua de três ou quatro famílias abas­tadas; morava, lá, o Jack Camomila (o dos lotações), cuja mulher tinha jóias de 150, 200 contos; raro era o telhado sem antenas de televisão. Pois bem: e, no entanto, a geladeira mo­desta e, mesmo, humilde do Dr. Odorico causou uma certa sensação. A notícia correu mundo; houve o cochicho geral: “D. Engraçadinha ganhou uma geladeira!” Falou-se mesmo em Sheer Look. O gigantesco caminhão do Rei da Voz, entupindo a passagem, fora muito olhado.
Os outros iam chegando. O primeiro foi Zózimo. Desde a véspera, o dono da casa era outro homem. Fora ao trabalho com a alma mais leve, o lábio caído, um deslumbramento no olhar — como se estivesse vendo tudo pela primeira vez. E, lá, no emprego, perguntava a um e outro, com uma sensação de plenitude:
— Você viu aquele filme? Les Amants! Viu? Precisa ver! Vai ver!
Dizia isso, baixo, ao ouvido de cada um, fazendo sem querer um mistério comprometedor. Só pensava no episódio íntimo entre ele e a esposa. Ele, de joelhos e... Agora chega, em casa, assoviando. Mas ao dar com a geladeira, espantosamente nova e branca, com uma leve trepidação de motor, o som morreu-lhe na boca.
Olha, coça a cabeça. Volta-se:
— Mas que é isso?
Dr. Odorico adianta-se:
— Um presentinho, que tomei a liberdade...
Engraçadinha sorria, novamente comovida:
— Não é linda?
Olhando o dono da casa, Dr. Odorico suspira para si mesmo: “Eis o meu rival!” E não conseguia esquecer o verso do Ledo Ivo: “Teus pés frios soam como idílios.” Cada um que entrava fazia o mesmo. Vendo o impacto de todos — o juiz sentia-se feliz e realizado como um peixinho no seu aquá­rio. Essa felicidade, que devia ser perfeita, irretocável, tinha um único defeito ou seja: ele, Odorico, não era o marido. Poderia vir a ser amante talvez, mas na hora de dormir En­graçadinha viria mesmo deitar-se na cama conjugal ao lado daquela besta.
Dr. Odorico esfregava as mãos; insistia:
— Quer dizer que gostaram?
O único que olhou a geladeira com um angustiado es­panto foi Durval. Não entendia e perguntou, baixo e descon­tente, à Engraçadinha:
— Por que um presente tão caro?
Sem motivo, Engraçadinha enrubesceu:
— Natal.
E o filho, inquieto, com um sofrimento surdo e instintivo.
— Mas o Natal ainda está longe!
Dr. Odorico foi convidado para jantar lá, claro, e acei­tou, tanto mais que Engraçadinha disse-lhe, sorrindo: “Você é da família.” Ela possuía o segredo desses pequeninos achados que lisonjeiam de uma maneira, digamos, mortal. E, mais tar­de, depois do cafezinho, ele aproveita um momento em que os outros estão entretidos com a geladeira e baixa a voz, ofe­gante:
— Eu fiz uns versinhos para você. Queria lhe mostrar. Telefona amanhã, ao meio-dia. Telefona?
Olha para os lados e faz que sim com a cabeça. Experi­mentou tal euforia que a úlcera como que teve, lá dentro, verdadeiros arrancos.

*

Silene agarrou-o pelo braço:
— Escuta! Ninguém vai morrer e deixa de ser bobo!
Repetiu:
— Eu matei, Silene, eu matei! Fui obrigado porque...
Contou-lhe, impulsivamente, tudo. Explicava: “Ele me deu uma gravata e, então, eu... Se eu não matasse, Silene... você imagina... se eu não puxo o canivete e se...” Estavam debaixo da árvore, perdidos na sombra. Silene ainda olha para trás. Ninguém por perto. Abraça-se a ele.
Disse, quase boca com boca:
— Fez bem, sim. Era o papel.
— Você ainda gosta de mim?
Silene passa os dedos pelo seu rosto:
— Gosto. Muito.
— Mesmo sabendo que eu matei um homem?
A pequena aperta entre as mãos o rosto de Leleco:
— Agora é que eu estou gostando de você. Antes eu...
Ele completa:
— Antes você não gostava.
Vacila:
— Mais ou menos.
Aquilo deu-lhe uma raiva brusca:
— Escuta aqui! Se você não gostava de mim...
— Um pouco.
— ‘Um pouco’ não é gostar. Se não gostava de mim, como é que foi ao Bar do Pepino? Explica! Lá, você tirou a roupa. Eu saí e, quando voltei, você estava pelada. Ou será que você faz isso com qualquer um? Responde. Diz a verdade! Você já fez isso com alguém?
— Nunca!
— Fez, sim! Eu pensei que fosse amor. Mas se não era amor...
Soluça:
— Era amor!
E ele, chorando também:
— Como é que uma mulher, uma menina... você nem 15 anos tem. Como é que uma menina entrega a virgindade sem gostar? Se você não gostava antes, agora muito menos!
Foi violenta:
— Deixa de ser burro! Agora eu gosto! Gosto e... Leleco, olha: hei de provar o seguinte. Não sei se antes gostava. Fui ao Bar do Pepino, não sei por que, e escuta: não interessa o Bar do Pepino. O que interessa é que eu gosto de você. Talvez já gostasse antes, quem sabe? Mas, olha, presta atenção, Leleco. Deixa eu falar.
Com a garganta contraída, sopra: “Meu amor!” Silene dá-lhe, no rosto, beijos curtos e rápidos:
— Você fez bem. Fez o que devia fazer. O único defeito que o homem não pode ter é esse. Se você topasse uma coisa dessas, eu não te queria ver nem pintado. Escuta, escuta. Deixa eu falar.
O abandono da menina era tão desesperado que ela experimentou uma selvagem alegria. Açulou-a: “Fala! Fala!”
Respira fundo:
— Você não vai se matar coisa nenhuma. Te quero pra mim. E se for preciso — baixa a voz — você foge!
Recua:
— Sozinho?
Suspira, triste e feliz:
— Comigo!

*

Dr. Odorico volta para a cidade em pânico. Deixara es­capar, por uma dessas leviandades fatais, a promessa dos ver­sos. No lotação, pergunta a si mesmo: “Que versos?” Noutros tempos, teria improvisado, de um dia para outro, um soneto, ao gosto de Raul Machado, Daltro Santos. Suspira: “Quando eu me lembro de Raul Machado, Daltro Santos.” Suspira: “Quando eu me lembro que já fui um Oto Lara Resende!” Fizera, sim, uma promessa imprudente e, pior, inexeqüível. Na Candelária, salta e recorre, novamente, ao telefone da casa de petisqueiras. Liga para o Wilson Figueiredo. Uma hipótese o trava: “Se o Wilson Figueiredo me tratar friamente,” Liga, por fim. O Wilson Figueiredo atende. Pergunta com uma involun­tária humildade:
— Pode falar agora ou tem muito serviço?
Do outro lado, o jornalista foi de uma efusão até exa­gerada:
— Estou com matéria em cima da mesa, meio atrasado, mas Vossa Excelência manda! E o que é que há de novo?
Essa exuberância fez ao juiz um bem tremendo. Respira: “Bom menino, o Wilson! E tímido. Como eu, tímido como eu!” Explica, alegremente:
— Estou num beco sem saída. É uma dificuldade dos diabos. Nem sei. Imagina que eu prometi a uma senhora, uma senhora que eu conheço, prometi uns versos. Para amanhã. Um soneto, Wilson. E talvez você possa me ajudar.
Na redação, o Wilson fazia um afetuoso escândalo:
— Amando, meu caro juiz?
O outro ria, num deleite imenso:
— Propriamente, não. Não é amor. Digamos, atração. Já não sou criança. Fiz 48. Mas você, Wilson, sabe de um soneto, não muito conhecido, que você soubesse de cor...
O jornalista foi taxativo:
— Sei!
Exultou: “Ótimo!” E o Wilson:
— Aliás, um soneto formidável. Sabe de quem? Faz uma idéia! Do Oto!
— Oto Lara?
Wilson disse, por extenso: “Oto Lara Resende, sim, se­nhor! Tem um soneto, não sabia? O Oto tem um soneto!” Numa satisfação que o alagava, o Dr. Odorico pede lápis ao homem da caixa. Pigarreia: “Quer ditar?” Wilson começa e acaba:
— “E entrego o corpo lasso à fria cama.”
Dr. Odorico escreve. Silêncio. Pergunta:
— Que mais?
— Só.
A confusão do juiz foi uma dessas coisas dolorosas:
— Não tem mais nada?
Wilson disse, inapelável:
— Nada. Só isso. O soneto do Oto só tem a chave de ouro. O Oto só escreveu a chave de ouro.
O juiz faz uma pausa escandalizada. Insiste: “Mas como?” O Wilson teve de explicar que a idéia do Oto Lara fora es­crever um soneto de trás para diante. E tudo começava e tudo acabava na chave de ouro. Dr. Odorico tem a suspeita aguda de uma brincadeira deprimente. Pensa, já num princípio de humilhação: “O Wilson está me tratando com pouco caso. E eu não mereço, que diabo!” O jornalista, porém, sugere:
— Mas escuta, Meritíssimo! O senhor diz à dama, ou­viu? Diz à rapariga...
Dr. Odorico acha delicioso o termo ‘rapariga’, com um toque à Júlio Diniz. Começa a sorrir.

*

Leleco deixa Silene e passa em casa para voltar com D. Araci. Ia atravessando o portão quando alguém o segura:
— Está preso.

Nenhum comentário: