domingo, 22 de novembro de 2009

CAPÍTULO LXXXI

Engraçadinha fecha a gaveta e vira-se para o marido:
— Escuta, Zózimo — e pergunta a uma das meninas: Onde está seu irmão?
— Banheiro.
Engraçadinha senta-se na cabeceira da mesa. Zózimo do­bra o jornal (acabara de ler, na seção de esportes, um artigo contra o Hilton Santos). A mulher começa:
— Bem. Hoje, eu tive que...
Pára, porque Durval aparece. Fala para o rapaz:
— Vem ouvir também, meu filho. Senta. O negócio é o seguinte: vocês sabem que nós devemos muitos favores a D. Araci. Sempre foi muito prestativa e...
Zózimo que, de vez em quando, olha para a geladeira e parece lambê-la com a vista, Zózimo foi de uma larga efusão:
— Ah. D. Araci é fogo! Boa demais, cem por cento!
Engraçadinha anima-se:
— Pois é. No parto de Silene, se não fosse ela, eu nem sei...
Durval afunda-se na cadeira, estica as pernas e suspira:
— D. Araci é legal. Só não topo é aquela mania do Ce­guinho!
Engraçadinha continua:
— D. Araci veio pedir pra Leleco dormir aqui uns dias...
Durval pula:
— Aqui?
— Aqui. Por uns dias, Durval. E eu disse que sim.
Durval ergue-se, estupefato. Anda de um lado para outro:
— Mas como é, mamãe? Aqui não tem lugar!
Doce, mas firme, disse:
— Escuta, meu filho! Durval, deixa eu falar, sim?
Zózimo intervém:
— Deixa tua mãe falar!
Durval senta-se: “Essa, não!” No seu jeito macio, persua­sivo e irredutível, Engraçadinha conta para os filhos:
— Eu não sei o que é que há com Leleco. Parece até que está ameaçado. Ele dorme na sala com você, meu filho, dorme. Leleco não é de cerimônia.
O filho ergue-se, novamente: “Mamãe, aqui é uma casa de moças e Leleco é um homem, mamãe!” Atalha, vivamente: “Um menino e olha, Durval, não seja assim: podia ser meu filho!” Baixa a cabeça e cobre o rosto com uma das mãos. Está chorando.
Zózimo ergue-se (tinha também a lágrima fácil):
— Vocês deviam dar graças a Deus pela mãe que têm! Eu sei que é chato, desagradável, mas não faz mal. E é por isso, escuta, Durval!, é por isso que eu gosto de tua mãe e digo mais: tua mãe não existe.
O filho respira fundo:
— Lavo as minhas mãos!

*
No dia seguinte, Dr. Odorico saiu cedo de casa. (Tinha um milhão de coisas para fazer.) A mulher foi levá-lo até o portão. Baixa a voz, com sofrida humildade:
— Olha, eu queria ir a um cineminha. Se você puder, vem cedo, sim?
Pigarreia:
— Depende.
E ela, sôfrega:
— Se puder! E se não puder, paciência! Não faz mal!
Essa humildade, que parecia lambê-lo, era de uma pun­gência insuportável. Dali ele passou na casa do juiz-substituto, Dr. Eustáquio. Sempre achara que o casamento põe no sujeito uns grilhões de barbante, que não resistem a um pontapé. E, súbito, verificava que não, verificava que os grilhões são mesmo grilhões. Chega a casa do juiz Eustáquio e aconteceu uma coisa muito interessante. O colega faz-lhe à queima-roupa a pergunta:
— É verdade que você vai se separar?
Recua:
— Eu?
O outro falava como se já soubesse do miserável episódio da véspera. Pálido, Dr. Odorico geme: “Terra miserável! Aqui a calúnia anda solta!” O colega baixa a voz:
— Dizem que você tem uma paixão e...
Fora de si, o Dr. Odorico interrompe:
— Deus me livre, Eustáquio! Essa gente, só a tiro! Posso estar apaixonado e daí? Não há menor relação entre alhos e bugalhos. Amante é amante e esposa é esposa. E, além disso, escuta, Eustáquio: eu acho uma indignidade abandonar uma esposa — toma respiração e ergue a voz: — Não se abandona nem uma namorada!
Erguia a frase do Oto Lara como um estandarte. O Dr. Eustáquio, que era um pouco míope, esbugalhava os olhos. Aprendera a desconfiar dos veementes e a fúria do amigo pare­ceu-lhe meio suspeita. De mais a mais, sabia que aquele casal vivia engalfinhado, Certa feita, D. Hermínia arremessara no Dr. Odorico um rádio de cabeceira. O juiz teve que se atirar no chão para não ser varrido pelo aparelho! E, agora, em tom cavo, dizia:
— Pelo contrário! Eu me casei com uma santa! E uma coisa não impede a outra: a esposa e a amante. Pode parecer cinismo, mas eu acho o seguinte: entre o desquite e a infideli­dade, acho esta última muito mais generosa, humana, familiar e social. Palavra de honra!
Dr. Eustáquio ouvia com admiração tão evidente que o Dr. Odorico põe-se a pensar: “Cada sujeito tem um Oto Lara de sua preferência. Eu sou o Oto Lara do Eustáquio.” Por fim, Dr. Odorico fez o pedido:
— Vou ter um dia cheio. Queria que você agüentasse a mão — e baixa a voz: — Tenho que passar na Câmara e no Senado.
Dr. Eustáquio sabia das ‘amizades legislativas’ (como dizia) do colega. Sob o incentivo daquela admiração, Dr. Odo­rico faz a confidência:
— No Senado, vou falar com o ‘louro-mouco’.
Espanto do outro (Dr. Eustáquio achava que o apelido é muito mais fidedigno, muito mais revelador que o nome):
— Quem é o ‘louro-mouco’?
Já o Dr. Odorico caía em si. Tomado de um pânico pro­fundo punha as mãos na cabeça:
— Pelo amor de Deus, Eustáquio! Não me diz a ninguém que eu chamei o Lourival de ‘louro-mouco’! Pelo amor de Deus!
De olho aceso, lambendo os beiços, Dr. Eustáquio ex­clama:
— Mas é o Lourival Fontes?
E o Dr. Odorico:
— É, mas que o Lourival não saiba! Se ele desconfiar que eu... É assim que nascem os ódios, Eustáquio! Escuta: eu aprendi sabe o quê?
Tomado de uma misteriosa euforia verbal, falou mais do que devia:
— Você quer subir? Quer chegar a desembargador? A ministro? A fórmula é simples: não faça restrição, nunca! A ninguém, compreendeu? A ninguém! Cada restrição é um ini­migo! E olha, Eustáquio, toma nota: não há inimigo insignifi­cante! Você entende? Qualquer inimigo é uma potência!
Dr. Eustáquio ouvira dizer que a política é arte de fazer amigos. Dr. Odorico nega com uma ferocidade jucunda:
— Mentira! O amigo não interessa! O amigo trai na primeira esquina! — e repetia, numa certeza fanática: — Na pri­meira esquina! Ao passo que o inimigo não trai nunca. O inimigo é o que vai cuspir na cova da gente!
Dr. Odorico faz uma pausa fremente. Tira o lenço e enxuga os lábios. “Falei como o Oto Lara”, diz para si mesmo. Vai concluir:
— E se o Lourival sabe que eu o chamei de ‘louro-mouco’... Parece pouco, mas aí é que está — acrescenta triunfan­te: — Os grandes ódios nascem das subcausas.
A admiração do Dr. Eustáquio vai acompanhar o colega até a porta. Mas o Dr. Odorico resolve deslumbrá-lo com outras ‘amizades legislativas’:
— E na Câmara vou conversar com o Hélio Ramos, do PR da Bahia. O Hélio é que vai me levar ao Leiva Moreira. Outro é o Almino Afonso, moço, mas uma capacidade! É a turma, compreendeu?, da Frente Nacionalista. O Almino é pa­triota pra burro e o Neiva, ah o Neiva, outro: o Clydenor Freitas. O que falta ao Brasil é patriotismo. O sujeito tem vergonha de ser patriota! Vergonha, veja você!
Dr. Eustáquio faz humor lúgubre:
— O sujeito só não tem vergonha de roubar!
Dr. Odorico despede-se com um aceno de dedos. Não disse, mas pensou: “Onde há progresso, há ladrões.” Parecia-lhe que o gatuno é uma fatalidade do desenvolvimento.

*

Na polícia, a reportagem de Amado Ribeiro foi um estou­ro. O delegado Miécimo olha a manchete. Os tipos garrafais o ofenderam como uma agressão gráfica. Pula da cadeira: “Onde está o Piragibe?” Só faltou esfregar o jornal na cara do comissário: Espumava:
— Escuta, Piragibe! Isso aqui, está percebendo? Cala a boca! Isso aqui é pior do que xingar a mãe. Ouviu, Piragibe?
Piragibe já lera, claro. Mas relia, como se fosse um texto grego ou chinês. O delegado dava patadas no chão. Era um epilético frustrado. Nas suas exaltações, que eram freqüentes, parecia estar na iminência de um ataque que, entretanto, não vinha nunca. A crise sempre adiada o deprimia mais que a própria doença. Piragibe deixou-se cair na cadeira:
— Outra vez, esse Amado Ribeiro! Outra vez! É ele e o Mário Morel! Só um tiro na cara!
Novamente no limite da loucura, Miécimo vociferava:
— Por isso é que o Amado Ribeiro, esta besta do Ama­do Ribeiro, ele diz, com razão, que, no Brasil, só a imprensa descobre o crime! Olha, Piragibe: não trabalho mais com imbecis!
Piragibe recua:
— Mas assim você até ofende!
Salta:
— Pois é mesmo pra ofender! Não trabalho mais com você! Não trabalho e está acabado!
Piragibe sai, alucinado; decide: “Hoje, mato o Amado Ribeiro! Ah, mato!” No mesmo instante, o delegado Miécimo liga para o Gabinete: “O Piragibe não dá uma dentro! E eu já não agüento mais. Transfere o Piragibe para o 29.° e põe o Rolinha aqui!”

*

Na cidade, antes de passar na Câmara, Dr. Odorico entre­ga à Engraçadinha os versos do Oto Lara: “Uns versinhos que eu fiz para você.” Emocionada, ela apanha o papel. Lá estava:
“E entrego o corpo lasso à fria cama.”

Nenhum comentário: