segunda-feira, 23 de novembro de 2009

CAPÍTULO LXXXII

Engraçadinha ligou exatamente ao meio-dia. Dir-se-ia que ela estava, ao lado do telefone, com um cronômetro implacável marcando cada minuto, cada segundo. Ao reconhecer-lhe a voz, Dr. Odorico exultou. Era de opinião que não há virtude mais estimável e mais repousante do que a pontualidade.
Muito doce (uma voz de adolescente), ela dizia:
— É Odorico? Sou eu, Engraçadinha, ouviu?
E ele, grudado ao telefone, nervoso, já com dispnéia:
— Engraçadinha? Olha: como vai? Escuta, Engraçadinha, está escutando?
Na sua angústia, concluía: “Ouve-se melhor São Paulo que Vaz Lobo.” E exagerava para si mesmo: “Vaz Lobo é pior que telefonema internacional.” Gostaria de ter uma voz potente como a do Heron Domingues, uma voz a um tempo grave, nítida e passional. Um simples ‘bom dia’ do Heron Domingues fazia o ouvinte tremer.
Continuou:
— Escuta, olha, Engraçadinha, escuta! Você pode dar um pulo na cidade? Como? Engraçadinha, estou perguntando...
Do outro lado, veio pedindo: “Fala com a boca encostada no fone!” E ele, com uma sensação de fogo no rosto:
— Você pode encontrar-se comigo? Olha: encontrar-se comigo na cidade? Está ouvindo? Aqui na cidade? Olha: eu trouxe os versinhos.
Teve medo de que o soneto do Oto não fosse um motivo bastante forte. Aflito, improvisa outro:
— Vem, olha: vem que nós passamos na Prolar. Está ouvindo? É o telefone. E agora? Está ouvindo bem? Melhor? Olha: vem, que eu te apresento ao Benício. Ao Benício Fer­reira Filho. Vem? Então, escuta: você se encontra comigo...
— Onde?
E ele:
— Eu te espero na esquina, ouviu? Na esquina, olha: de Uruguaiana com Sete de Setembro. Às duas horas. Duas horas!
Na despedida, deixou-se comover e disse, num transbordamento:
— Deus te abençoe!
Mas ao sair do telefone, exausto do esforço vocal e audi­tivo, com uma abundante transpiração, estava na dúvida. Já lhe parecia que o “Deus te abençoe”, que lhe escapara com uma espontaneidade irresistível, soara meio inadequado. O diabo é que ao vê-la e ouvi-la experimentava uma dessas ale­grias tumultuosas e, mesmo, sufocantes. Suspirou, sozinho: “Sou casado, tive amante, fiz as minhas bandalheiras.” E, no entanto, eis a verdade: Engraçadinha era a sua primeira namorada.
Caminhando para a esquina do encontro, ia pensando: “Preciso arranjar, o quanto antes, um apartamento.” Sim, um apartamento discreto, discretíssimo, residencial. (Fazia questão que fosse residencial.) Imaginava um edifício, de preferência no Centro. Ou na Tijuca, Grajaú. E insistia, consigo mesmo: “Com crianças no corredor, fazendo algazarra.” Finalmente, chegou ao local do encontro e olha o relógio: faltavam ainda quarenta minutos. Andando de um lado para outro, sonhou largamente: “Em primeiro lugar, preciso me alimentar bem. É importante, a alimentação é importante. Horas certas nas refeições.” Parado, diante da vitrina, olhava sem ver. Pensava: “Tenho que arranjar esse apartamento!” E, súbito, sente a úl­cera mais frenética do que nunca. Acabava de ver Engraçadinha, ao longe. Vinha de Ouvidor para Sete de Setembro. Em risco de ser atropelado, atravessa a rua, sem olhar para os lados. Um carro passa-lhe de raspão. O chofer ainda se vira para xingá-lo:
— Palhação!
Nem ouviu. Repetia para si mesmo: “É minha primeira namorada!” Inclinou-se para beijar-lhe a mão. Transeuntes viravam-se para olhar o velho elegante, de paletó ligeiramente cintado, e aquela senhora realmente bonita. Num enleio, que a embeleza, Engraçadinha pergunta:
— Esperou muito?
Ele podia dizer que a esperava há vinte anos. Caminha­ram, lentamente, lado a lado. Súbito, Dr. Odorico estaca:
— Vamos fazer o seguinte: que tal um sorvete ali, na Cavé?
Vacila: “Sorvete?” Baixa a voz, com uma agoniada hu­mildade:
— Está calor, não está? Sorvete ou... Você escolhe. Lá, a gente conversa melhor e... Quer?
Sorri:
— Aceito.
Atravessam a rua, logo que o sinal fechou. Engraçadinha pergunta se aquele sorvete, com um homem, se não seria uma imprudência ou, mesmo, uma leviandade. Ao lado, vibrante, numa felicidade dilacerada, ele decide: “Tenho que me alimen­tar em horas certas.” Achava que o estômago vazio não só prejudica o hálito como pode ocasionar contratempos, os mais desagradáveis. Por outro lado, reconhecia que devia resol­ver o quanto antes o problema do apartamento. Queria acreditar que o lugar ideal e de todo insuspeito seria Haddock Lobo. Ao sentar-se com Engraçadinha decidiu: “Haddock Lobo ou Paulo de Frontin.” Antes que aparecesse o garçom, tirava o verso:
— Escuta, olha. É o seguinte: eu vou fazer, em sua home­nagem — e frisou: — só para você, um soneto de trás para diante.
Ergue a cabeça, numa surpresa encantada:
— Como?
E ele, radiante com o efeito:
— Pois é. De trás para diante. Começo pelo fim. Cada dia faço um verso e entrego a você.
Fez um espanto de menina: “Quer dizer que...” Sorriu, vermelho:
— Exatamente. Hoje, de manhã, eu faço versos pela ma­nhã, eu escrevi a chave de ouro que está aqui.
O garçom estava diante deles. Engraçadinha pediu sorvete de creme e ele um suco de laranja. Mas acrescentou:
— Escuta. Traz uns docinhos. Tem mil folhas? Traz mil folhas — e baixa a voz para Engraçadinha: — Aqui fazem muito bem.
Finalmente, Engraçadinha pôde ler o soneto do Oto Lara: “E entregue o corpo lasso à fria cama.” Leu e releu, sem dizer nada. Já o Dr. Odorico (assustado) arrependia-se. Estava achando que realmente, para uma senhora honesta e, de mais a mais, protestante, havia, no soneto do Oto, inconveniências graves. Aquela ‘fria cama’ somada ao ‘corpo lasso’. Realmente, ‘lasso’ de que e por quê? Os versos eram dum erotismo inequí­voco, direto, talvez grosseiro. E já ia pedir desculpas quando Engraçadinha ergueu o olhar:
— Bonito.

*

Amado Ribeiro ia sair. Num canto da redação, Carlos Renato começava a escrever: “A fidelidade facultativa...” Pára. Escolhe palavras; e continua: “A fidelidade facultativa, admite-se. Mas a fidelidade imposta é abjeta.” Mineirinho, o contínuo, berra:
— Amado Ribeiro!
O repórter volta da porta e atende. Logo abre o riso: — era o delegado Miécimo. Do outro lado da linha, Miécimo exagera, melífluo:
— Formidável tua reportagem, Amado! Formidável! Mas escuta: Amado, eu precisava falar contigo agora, ouviu? Bater um papo. Agora! Um papinho. Vens?
Disse que ia. Deixa o telefone e apanha o táxi. Foi encon­trar o Miécimo, com o comissário Rolinha, à sua espera. O delegado ergue-se:
— Vamos sair, Amado. O pessoal já está no apartamento do Petruscu. Você não disse que era o assassino do Cadelão? O homem já está em cana.
Desceram. No automóvel o Miécimo vinha dizendo:
— Amado, eu quero trabalhar contigo nesse caso. Você tem uma razão, uma certa razão. Realmente, a imprensa, no Brasil, manda pra burro. Quer trabalhar com a gente? De co­mum acordo? Quer?
— Depende.
— Por quê?
Foi de um descaro total:
— Trabalho com você, se você me der exclusividade por um mês. Por um mês, no seu distrito. Exclusividade batata. Por um mês, interessa?

*

Quando o delegado, o Rolinha e o Amado entraram no apartamento do professor, este arremessou-se. Abria os braços:
— Eu não matei ninguém! Escuta aqui. Eu não matei ninguém. Minha mulher sumiu e mandou dizer, agora, mandou dizer agora, pela vizinha, que estava bem e que... Doutor, eu queria que o senhor lesse. Onde é que está? Ah, está aqui...
Catou nos bolsos o recorte de jornal. Com o olho rútilo e uma efervescência de saliva nos dentes, passou ao delegado o artigo do Eurico Nogueira França. Surpreso, o delegado põe os óculos. Ao lado, o professor geme:
— É o artigo que o Eurico, que é, o senhor sabe, o maior crítico musical do Brasil. Pois é: e o Eurico escreveu sobre o meu concerto, doutor. Eu sou um artista, não sou um assassino. Eu não matei o Cadelão, juro!
Há uma hora atrás, a vizinha de baixo trouxera o recado de Maria Aparecida: “Diz que eu não morri, mas que não volto!” Logo depois, a polícia invadiu-lhe a casa. Foi abotoado:
— Confessa ou não confessa?
Mostrou a um por um o artigo do Nogueira França. Batia na mesma tecla: era artista, e não assassino. E quando falou em advogado, levou o primeiro bofetão. Cai por cima das ca­deiras, com as pernas ignobilmente abertas: “Bico calado! Não fala! Cala a boca ou te arrebento!” O que sentiu não foi bem medo, nem humilhação, mas espanto. E quando entrou o delegado, com o Rolinha e o Amado, Petruscu quis acreditar na justiça de uma autoridade sobrenatural. O delegado lê por alto. Tira os óculos e os guarda no bolso do lenço. E, então, na cara do violinista, começa a rasgar o recorte. Petruscu ainda estendeu a mão torcida:
— Não faça isso!
Numa maldade sem paixão, Miécimo rasga ainda. Por fim, atira na cara do professor o papel picado, como confete. No seu espanto e na sua dor, Petruscu balbucia: “O artigo de Nogueira França!” Olha para o chão como se quisesse apanhar o picadinho e reconstituir aquela glória impressa. Segurando o próprio queixo, num tom macio e impessoal, o olhar perdido, Miécimo pergunta: “Você confessa ou não confessa?” O pro­fessor olha para uma cara, outra, ainda uma terceira; e recua:
— Eu não matei ninguém!
Miécimo vira-se para Rolinha:
— Vamos fazer o seguinte: vamos levar esse cara pra Meriti. Lá, não tem habeas corpus, não tem advogado e...
Sem o artigo do Eurico Nogueira França no bolso, Pe­truscu sentia-se um ser incompleto, mutilado, indefeso. Deixou-se levar como uma criança atônita.

*

Na sorveteria, Dr. Odorico pergunta a si mesmo: “Será que ela percebeu que está namorando? Que estamos namo­rando?”

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