terça-feira, 24 de novembro de 2009

CAPÍTULO LXXXIII

Transpirando de felicidade, baixa a voz:
— Que tal esse doce?
Disse, radiante:
— Uma maravilha!
“Parece uma menina”, pensava o Dr. Odorico. E não tirava os olhos de Engraçadinha. Naquele momento, ela deixara de ser a esposa, a mãe, a protestante. Ria, ou sorria, como uma colegial, uma garota do Pedro II ou do Instituto de Educação, fazendo gazeta. “Ah, se ela quisesse, eu largava o Judiciário, largava tudo, e fugia no mesmo instante!” Ao mesmo tempo, pondera para si mesmo: “O diabo é que, agora, ninguém foge mais!”
Novamente cochicha, como se fosse um segredo:
— Aqui, fazem uns doces ótimos!
Enxugando os lábios, com um pequenino guardanapo de papel, Engraçadinha concorda, gravemente. Foi então que, de­pois de olhar para os lados, Dr. Odorico pigarreia:
— Escuta, Engraçadinha. Apenas uma pergunta, uma curiosidade. — toma respiração e continua: — Você iria pra Brasília?
E ela:
— Brasília?
Anima-se:
— Pois é. Brasília. Você, o Zózimo, todos. Gostaria de ir? Estive lá e olha: está uma beleza. De arrepiar, entendeu? Porque, presta atenção: O Zózimo já é funcionário e a trans­ferência arranja-se, ouviu? Arranja-se. Tenho relações e estou disposto a queimar todos os cartuchos.
Engraçadinha sonha:
— Brasília.
Na ânsia de convencê-la, vai falando. Em dado momento, chama o garçom:
— Quer trazer outro copo d’água? Você também quer, Engraçadinha? Não? Um só. Mas como eu ia dizendo: malham o Juscelino, mas escuta. O Juscelino, Engraçadinha, é o maior presidente que o Brasil já teve, o maior!
Com um jeito hesitante de quem não entende de política, atalha:
— Eu gostava do Getúlio.
— Exato, exato. Eu também, mas escuta: o Getúlio é di­ferente. Matou-se e eu sou dos que acham que o suicida sempre tem razão. Mas o Juscelino! O caso da carne é um primor. O Juscelino é tão genial que não sabia o preço da carne. Um belo dia, vê uma fila, uma fila imensa, que dava duas voltas no quarteirão. Ele pensou que fosse a fila do Metro. É o gênio, compreendeu? O preço da carne é um detalhe e o gênio passa por cima do detalhe.
Parou um pouco. Olha em torno, com irritação. E o copo d’água? Já estava com vontade de não dar gorjeta. Então, com uma curiosidade sonhadora, como se Brasília pertencesse a um outro mundo, Engraçadinha pergunta:
— Como é que é lá, heim?
Dr. Odorico começa a sentir uma certa insuficiência verbal:
— Bem. Brasília. Deixa eu te explicar. É inútil, Engra­çadinha, é inútil. Vou fazer uma comparação. Não adianta. Só vendo. O sujeito tem que ir lá. Brasília é uma coisa tão for­midável, mas tão que... E essa água gelada que não vem. Pra fazer Brasília só mesmo um presidente que confunde as filas da carne e do Metro e pensa que açougue é cinema.
A demora da água parecia-lhe, já, uma desfeita. De olho no garçom, que sumira, exalta sempre o Juscelino. Chamavam o presidente até de cafajeste. Dr. Odorico exaltou-se:
— Talvez. E daí? O gênio é cafajeste. Um cafajeste gigantesco. Miguel Ângelo é cafajeste e o Osvaldo Teixeira, não. Nem o Elmano Cardim. Outro: Edmundo da Luz Pinto. Eu gosto muito do Edmundo da Luz Pinto, mas ele não é um cafa­jeste. Já o Juscelino é. Um irresponsável genial. O Miguel Ân­gelo xingava até os papas. E a água gelada? Mas que é que há? Você está aí de testemunha, Engraçadinha. Há quanto tempo eu pedi?
Ela suspira, com delicada solidariedade: “Demoram mui­to!” Dr. Odorico chama outro garçom:
— Escuta aqui. Vem cá. Eu pedi um copo d’água gelada — e exagerou: — Há meia hora estou aqui esperando!
— Vem já.
Foi duro:
— Vem já, não. O Brasil é a terra do ‘vem já’. A casa precisa ter mais consideração. Que diabo!
E o garçom:
— Um momentinho.
Sentindo-se com a facilidade verbal de um Oto Lara, o juiz volta a Brasília:
— Sabe que o Judiciário vai pra lá, não sabe?
Faz espanto:
— Quer dizer que vamos perder um amigo?
Protesta, vivamente:
— Depende de vocês. Exclusivamente. Mais de você que dos outros. Se você quiser ir, olha: eu arranjo a transferência do Zózimo. Arranjo. Tenho relações. Falo, hoje, com o louro-mouco. Desculpe: é o apelido do Lourival. E falo também, olha, com o Neiva Moreira, da Frente Nacionalista. Escuta, En­graçadinha: sem falsa modéstia, eu acho que você precisa de mim, assim como eu preciso de você. Nós precisamos um do outro, Engraçadinha, ou estou enganado?
Vem a água gelada. Engraçadinha olha-o, em silêncio. Ele pergunta, oferecendo o copo: “Quer?” Faz que não, com a cabeça. Ele bebe a água de uma vez só, com uma sede brutal. Pousa o copo. Inclina-se:
— Você vai pra Brasília, Engraçadinha, vai?

*

Logo que o carro partiu, o professor, entre o delegado e o Amado Ribeiro, vira-se para a autoridade:
— Doutor, eu fui agredido! Agredido em minha própria casa!
Miécimo simula espanto:
— Mas não é possível!
Agarra-se ao delegado:
— Na minha idade, fui esbofeteado. O senhor compreen­de? Uma bofetada, na minha idade. Na minha idade, doutor!
Rolinha atalha:
— Escuta, professor: sua mulher já contou tudo, já deu o serviço e...
Reage, feroz: “Eu não matei ninguém e nem confesso nada!” Miécimo baixa a voz, numa doçura melíflua:
— Não confessa?
— Nunca!
Rolinha já ergue a mão: “Ó seu cachorro!” Rápido, Mié­cimo segura o braço do comissário:
— Eu não admito pancada! Tudo, menos pancada! E ou­tra coisa: o nosso professor vai confessar em Meriti. Não é, professor? Lá. Confessa. Não confessa?
Fora de si, o outro estrebucha:
— Não matei ninguém! Sou inocente!
Até o fim da viagem não se falou mais do crime. Final­mente, chegam. Miécimo veio de braço com o acusado. Na sua excitação, Petruscu ia repetindo: “O senhor, que é um homem de cultura...” Entram numa sala, que, imediatamente, o dele­gado manda fechar. Cercado de caras de todos os lados, Pe­truscu não sabe para onde se virar.
Com a máscara dura, inescrutável, Miécimo pergunta:
— Pela última vez: vai confessar?
Olha em torno, antes de responder:
— Sou inocente, doutor!
Todos recuam lentamente. Miécimo diz, contraindo a boca:
— Tira a roupa!
— Por quê?
Miécimo aproxima-se e, cara a cara, berra:
— Tira a roupa!
Quase sem voz, pergunta: “O paletó?” Outro berro:
— Tudo! Tira tudo! Vai tirando! Tudo! Fica nu!
Miécimo tem medo da própria violência. Diz para si mes­mo: “Vou ter o ataque!” Lembra-se do Moreira César que, em Canudos, em plena maturidade, já entrando na velhice, tivera a primeira crise brutal. Ao mesmo tempo que arranca o paletó do preso, pensa: “Também vou ter meu primeiro ataque, depois de velho!” Nu da cintura para cima, Petruscu geme:
— Basta?
— Eu disse ‘tudo’! Tudo! Não ouviu? Tudo!
O professor recua. Súbito, põe-se a gritar:
— O senhor não tem direito! Eu sou homem! Não se humilha um homem!
Miécimo derruba o professor com a primeira bofetada. Petruscu ergue-se e, por trás, o Rolinha dá-lhe uma rasteira. Cai e, ao tentar levantar-se, nova queda. Grita: “Vou dizer ao Eurico! Ao Nogueira França!” O delegado, possesso, berra:
— O ‘não-me-negues’! Dá o ‘não-me-negues’!
Vem a palmatória. Petruscu ergue-se e apóia-se na parede, ao mesmo tempo que limpa com as costas da mão o sangue do lábio partido. Miécimo ri surdamente; e do seu riso pende uma espécie de baba elástica e bovina. Os ombros caídos, um passo pesado de escafandro, caminha lentamente para o professor. Petruscu soluça: “Eurico, oh Eurico!” É um gemido a um tem­po manso e profundo. Miécimo, com os maxilares vibrantes, diz:
— A mão! Dá a mão!
O professor tem uma última revolta. Berra: “Chamem o Eurico Nogueira França!” Repete: “Eurico! Eurico!” Parecia acreditar que o grito atirado de S. João de Meriti viesse cair, finalmente, aos pés do crítico. Mas foi dominado por dois ou três. Chegou a dizer: “Não se humilha um...” Recebe o pri­meiro bolo. Alucinado, retira a mão. Imediatamente, Miécimo bate com a palmatória no seu cotovelo. No quinto bolo, pedia:
— Pelo amor de Deus! Não me bata mais! Pelo amor de Deus!
Miécimo arqueja:
— Confessa ou não confessa?
Respondia, chorando: “Sou inocente!” Suas mãos estão roxas e enormes. Miécimo vira-se para Amado Ribeiro: “Toma, Amado! Toma o ‘não-me-negues’! Bate também, bate, Amado! Outros repórteres batem, ajudam a polícia a bater! Ah, não quer? Paciência!” Volta-se para o preso. Então Petruscu ergue um olhar estrábico de pavor:
— Não precisa me bater! Eu confesso! Mas não me bata mais! Pelo amor de Deus!
Olhava as mãos monstruosas, como se não as reconhecesse. Miécimo inclina-se:
— Foi você?
Parece tomado de insânia:
— Fui eu e olha: eu digo o que vocês quiserem. O que é que vocês querem que eu diga? Mas não precisa me bater. Eu assino tudo, tudo, sim? Assino já!

*

Engraçadinha acabava de dizer que ia falar com Zózimo sobre Brasília. Dr. Odorico repetiu, comovido: “Nós precisamos um do outro.” Há uma pausa. Ele, que já pagara a despesa, suspira:
— Vamos? Passamos na Prolar. Eu te apresento ao Be­nício e...
Calou-se, subitamente. Por cima da mesa, Engraçadinha passava-lhe um papel:
— Olha, Odorico. Eu não devo aceitar o versinho, por­que...
Devolvia-lhe o soneto do Oto Lara.

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