quarta-feira, 25 de novembro de 2009

CAPÍTULO LXXXIV

Espantado, Dr. Odorico senta-se, novamente:
— Não quer os versinhos? Você recusa, Engraçadinha?
Ela escolhia as palavras:
— Odorico, escuta: não é bem recusar. Não se trata de, entende?
Gelado de angústia, pensa: “Enxota, escorraça os meus versos!” Começa a falar, tumultuosamente:
— Eu lhe peço. É um pedido. Fique com a lembrança. É apenas uma lembrança. Eu acho, sabe o quê? Com licença. Um momento. Eu acho, sinceramente, que você interpretou mal, não interpretou como devia e aliás...
No medo de perdê-la, apanha em cima da mesa a mão da mulher amada:
— Esses versinhos são uma homenagem. Delicada. E ino­cente, Engraçadinha! Homenagem inocente! É como se fosse, vamos fazer de contas, uma flor que eu oferecesse a você. Você recusaria uma flor?
Agoniada, pergunta:
— E a minha situação?
Ele apanha o lenço e enxuga a testa. “Ia tudo tão bem!”, foi a sua revolta. Tinha vontade de chorar. Impulsivamente, faz confidências:
— Você não sabe, nem imagina. Mas olha — e baixa a voz: — Eu não fui feliz no casamento. Desculpe de lhe falar assim, mas é que... entende? Eu acho que entre amigos não deve haver segredos. Mas o meu casamento, Engraçadinha! Não há entre mim e minha esposa, digamos: não há uma certa com­preensão. É como se eu vivesse só.
Ao mesmo tempo que fala, ele pensa: “Já passou o efeito da geladeira. Ninguém se lembra mais da geladeira.” Na fúria do seu despeito, repete para si mesmo: “Não pago uma presta­ção! O Medina não vai ver de mim um vintém!”
Engraçadinha suspira:
— Olha, Odorico: eu compreendo a sua intenção e agra­deço. Mas não devo aceitar. Não fica bem.
Tudo o que ela está dizendo soa como um adeus delicado, mas claro. O juiz sente-se um despedido. “Aceitou a geladeira e não aceita um verso”, foi o seu lúgubre sarcasmo. Afinal de contas, todas as mulheres são iguais. “Nenhuma escapa!” Sú­bito, dá-lhe uma espécie de raiva. Embora contido, foi duro:
— Dá o soneto, dá. Não quer, paciência. Eu levo de volta. Não faz mal.
Quer apanhar o papelzinho. Engraçadinha, porém, foge com a mão. Diz, vivamente:
— Eu quero! Aceito!
E ele, assombrado da incoerência:
— Aceita?
Respondeu, com jeito taciturno, erguendo o perfil, como se desafiasse não sei que misteriosos poderes:
— Você está certo e eu errada. Aceito.
Durante alguns momentos, olham-se apenas. Com a úlcera em dolorosa euforia, ele decide: “Amanhã, vou tratar do apar­tamento. Um que tenha espelhos para a cama.” Com um pouco de sonho no olhar, uma fina voluptuosidade na boca, Engra­çadinha relê o soneto do Oto Lara.
Suspira:
— É lindinho.
Guarda o verso na bolsa. Está grave e triste. Pergunta:
— Vamos?
Para o juiz todo o episódio do soneto fora uma nítida concessão. Por outro lado, a incoerência de Engraçadinha pa­recia-lhe de uma intensa e delicada feminilidade. Ergueu-se e vem pensando que a mulher ou é contraditória ou, então, um macho mal-acabado. A mulher não pode ter caráter. Já na calçada, em cima do meio-fio, esperando o sinal, Engraçadinha diz-lhe, com uma admiração quase terna:
— Eu não sabia que você era poeta.
Ri, numa confusão deliciosa:
— Quem não é poeta, de vez em quando? Também faço os meus versinhos — e acrescenta, com uma fina intenção: — Dependendo da musa!
O sinal abre para os pedestres. Os dois são muito olhados. Dr. Odorico imagina: “Todo mundo pensa ou que eu sou ma­rido ou que eu sou amante.” Atravessam a rua. Do outro lado, Dr. Odorico explica:
— Há uma particularidade que vai nos ajudar. É que o Benício torce pelo Fluminense. É tricolor doente.
— O Zózimo é Flamengo.
O juiz pigarreia:
— Flamengo? É, mas o Flamengo agora está por baixo. O Fluminense é que ganha de todo o mundo. Conclusão: o Benício está por cima da carne-seca. E não há momento me­lhor pra se arrancar do Benício um aumento de ordenado. Aliás, é um sujeito formidável. Alegre, sempre alegre. A única sani­dade mental do Brasil.
Olhava de esguelha Engraçadinha e imaginava um aparta­mento, com a cama diante do espelho.

*

Petruscu ainda chorava quando abrem a porta e uma mo­reninha escura entra, ali, debaixo de pescoções. O professor arqueja, mas já não chora mais. Olha e espera. Um sujeito torce o braço da crioulinha. Ela se esganiça: “Eu não roubei o reló­gio! Eu não roubei!” O investigador, em suspensórios, um vasto revólver na cinta, cospe no chão:
— Tira a roupa! Tira!
Só então Petruscu parece lembrar-se de que estava nu também. Nu e de sapatos. Instintivamente, cruza as mãos como uma folha de parreira. Pensa: “É mulher e vai ficar nua.” Mas, enquanto a espancarem, não se lembrarão dele. A morena des­pe-se. Desabotoa o soutien nas costas. Resta a calcinha, do nylon esverdeado, que, ofegante, tira também. Com as mãos arrebentadas pela palmatória, engrossa a voz.
Começa a apanhar.
— Ai, minha mãe! Ai, minha mãezinha! Não, não!
Não podia retirar a mão, porque batiam, por baixo, no cotovelo. Súbito, Petruscu vê: a morena apanhava e dos seus dois seios escorria leite. Ele olha com uma envenenada satisfa­ção. Depois, enfiam, novamente, o vestido na presa e a levam. Petruscu ouve dizer: “Xadrez!” A moça vai repetindo, com a voz pesada: “Minha mãe, oh minha mãe! Ai, minha mãe!” Petruscu já perdera o sentimento da própria identidade. Rece­beu ordens de vestir-se. Soluça sem lágrimas. Rolinha o em­purra:
— Está babando, seu porco?
Baixa a cabeça, ao mesmo tempo que passa a mão na boca. Miécimo puxa uma cadeira e senta-se diante dele:
— Bem. Como é? Conta. Como foi o negócio?
Já está de calça e começa a pôr a camisa. Tem um esgar de choro:
— Eu digo o que o senhor quiser, mas não sei, eu não...
Miécimo levanta-se:
— Escuta. Não foi você o assassino?
Geme:
— Fui, doutor, eu fui o assassino. Mas não sei como ma­tei! Não me lembro! Mas eu assino, o que o senhor quiser, eu assino!
Miécimo dá-lhe uma bofetada:
— Seu romeno porco! Vagabundo! Está vendo, seu Ama­do Ribeiro? O cinismo! Rolinha! Põe esse cara no pau-de-arara!
Petruscu cai de joelhos, aos uivos:
— Fui eu, sim, doutor! Fui eu o assassino! Mas olha, doutor! Doutor, pelo amor de Deus!
Abraçava-se às pernas do delegado: “O senhor é bonzi­nho! Doutor, eu conto!” Foi inventando, numa loucura de im­provisação:
— Sabe como foi, doutor? — e repetia o título na espe­rança de adulá-lo. — Doutor, eu matei na escada. Foi. Na es­cada, doutor. Lá. Matei.
— Onde está a arma?
Olha em torno. Em seguida, baixa a vista, como se a pro­curasse pelo chão. Pensa: “Digo o quê, meu Deus? Não sei de arma nenhuma!” Com a saliva a escorrer novamente, chora para o delegado:
— Doutor, vamos fazer o seguinte: eu confirmo qualquer história. Qualquer uma — e encheu a sala com o seu medo feroz: — Tenha pena de mim! Não me bata mais!
Silencioso, Amado Ribeiro está pensando: “Ah, se eu pu­desse, arrancava o olho do Miécimo com o dedo em gancho.” O delegado vem bater-lhe nas costas:
— Gostou, Amado?
O repórter enfia as duas mãos nos bolsos:
— Não te disse? Batata, meu caro delegado, batata! No Brasil, quem descobre os crimes é a imprensa!

*

D. Araci saíra pouco antes. Ia falar com o Ceguinho. Nem D. Araci nem Engraçadinha conheciam toda a verdade. Sabiam, apenas, que alguém queria envolver Leleco num crime ou, talvez, matá-lo. Engraçadinha ainda sondou: “Você não fez nada, Leleco?” Jurou: “Sou inocente!” Iara ficou, lá, para fazer companhia ao irmão. Assim que Engraçadinha saiu, ele vira-se para a irmã:
— Iara, chispa e vai comprar jornal, anda!
Lendo uma fotonovela, diz:
— Não chateia, Leleco! Olha: estou no fim. Deixa eu acabar. Você é chato!
Leleco ergue-se (tem uma dor atravessada na fronte):
— Se você não vai, eu vou, pronto!
Dá dois passos e estaca: Silene aparecia na porta. Aban­dona a pasta e o jornal em cima do móvel. Lança-se nos braços do namorado. Antes porém do beijo, ele fala para a irmã;
— Cai fora! Anda, cai fora!
E quando a menina sai com a fotonovela, é que, puxando a blusa de Silene, no alto, beija e morde o seu ombro, passa para o pescoço e, finalmente, prende no dente o seu lábio in­ferior, Silene sente que a mão morre pelo seu corpo, crispa-se no seu quadril vibrante. Pede, quase sem voz:
— Morde mais um pouco!
Ela mesma abre a blusa. É beijada ainda no pescoço, no queixo, na orelha. Súbito, Leleco quer arrastá-la:
— Vem! Lá!
Geme:
— Não, Leleco, não!
Teima:
— No quarto!
E ela, ofegante:
— Pode vir gente!

*

Na Prolar, Durval está examinando a conta de um cliente. Ouve um companheiro, o Assis, falar para outro:
— Olha que ‘boa’, rapaz!
Durval ergue a vista e foi como se recebesse, material­mente, um pé no peito: era Engraçadinha. Com o Dr. Odo­rico ao lado, junto ao balcão, ela sorria para o filho. Durval sentiu que a mãe jamais fora tão absurdamente linda. “Ninguém é mais bonita do que mamãe”, pensou, com uma espécie de ódio. Percebeu que os companheiros a olhavam. Só de imaginar que aqueles cretinos pudessem desejá-la! Ergueu-se, lívido, e fez a volta do balcão.
Risonhamente, o juiz imagina: “A primeira vez que En­graçadinha for ao apartamento, eu tomo Gerocaína H-3.” Dur­val chega e, sem conceder-lhe um olhar, leva Engraçadinha pelo braço. Surpreso, o juiz não entende. Durval diz para a mãe, trincando os dentes:
— Vou quebrar a cara desse juiz! É agora!

Nenhum comentário: