quinta-feira, 26 de novembro de 2009

CAPÍTULO LXXXV

Tomou o táxi na porta do Serrador. Disse:
— Quer me levar em Vaz Lobo?
O chofer vira-se:
— Não ouvi.
— Vaz Lobo. Sabe onde é? Vaz Lobo?
O português responde, com um riso largo:
— Onde é, sei. Mas oh Madama! É Zona Sul!
Faz espanto:
— Zona Sul? Escuta: não sou daqui. Cheguei de Vitória. Faz diferença?
Já o carro passava pelo Municipal, lado da Treze de Maio. O motorista, que era um gordo (quase sem pescoço, umas bo­chechas de certas máscaras de carnaval), tem um riso fácil e bom:
— Diferença, faz. É bandeira dois, Madama. Mas se a senhora não se incomoda, isso é lá com a senhora.
Era uma senhora bonita (ou bonitona). O próprio chofer, com o seu gosto voraz, o seu apetite enorme, geme para si mesmo: “Linda rapariga!” Até o fim da viagem, a passageira não disse uma palavra. Tinha no olhar essa fixação do sonho e perdera a noção de tempo e lugar. Sobressaltou-se, quando o bovino pergunta:
— Que rua, Madama?
— Ah, sim, a rua?
Abre a bolsa e procura. Exclama;
— Ih!
Remexe ainda na bolsa. Tira outros papéis e nada. Com um desapontamento cruel, respira fundo:
— Deixei no hotel. E agora, meu Deus! Que cabeça a minha! Escuta: deixa eu ver como é o nome, deixa eu ver. Ah! Parece que é... Já sei: Vasconcelos. Não, não é Vasconcelos.
Pára um momento. Pergunta para si mesma:
— José Vasconcelos? Ah, não! José Vasconcelos é o ar­tista. Mas é Vasconcelos. Sabe de uma coisa? Vamos fazer o seguinte: vamos perguntar. É melhor.
O chofer não sabia de nenhuma rua que tivesse Vascon­celos. Chama um crioulo que ia passando:
— Oh, meu chapa! Vem cá! Conhece uma Rua Vascon­celos não sei o quê? Sei lá! Vasconcelos, conhece?
O Fulano não conhecia. Perguntaram a um outro e, de­pois, a uma senhora grávida. A passageira explicava, na sua angústia:
— Eu vim de tão longe, meu Deus! Vim do Espírito San­to para falar com essa pessoa. E como é que eu fui esquecer esse endereço?
Finalmente, o carro encosta na frente de uma confeitaria. A passageira desce também. Dirige-se ao homem da caixa. O chofer está perguntando:
— Ó patrício! Conhece uma rua, como é mesmo o nome, ó Madama!
Ela começa:
— O senhor por obséquio. Rua Vasconcelos. O resto não sei. Vasconcelos.
— Vasconcelos Graça?
E a senhora:
— Isso! Exatamente! Vasconcelos Graça! Obrigada! E o senhor conhece, por acaso, talvez conheça, uma família. A se­nhora chama-se Engraçadinha.
— D. Engraçadinha? Uma senhora bonita?
— Bonita!
O gerente (ou dono), português rico, cabelos negros, pele branquíssima, a barba densa e azulada, disse tudo:
— D. Engraçadinha compra aqui. Seu Zózimo. Conheço. As filhas, o filho, que é um rapagão. Se conheço. Não tem nem uma hora que a D. Engraçadinha passou por aqui. Uma hora ou nem isso. Uns quarenta minutos. Passou por aqui!
A senhora voltou para o carro e numa felicidade tão vio­lenta que chegou a sentir uma pontada no coração. Tomou o táxi e não se conteve:
— Se eu lhe disser que há vinte anos. Há vinte anos que eu queria falar com essa pessoa. Vinte anos! E só agora é que, por acaso, me deram o endereço... — e repetia na ob­sessão do tempo: — Vinte anos.
Quando o carro parou, numa casa de esquina (tão velha e tão feia), ela voltou a sentir a mesma dor do lado esquerdo. Seria coração? Pede ao chofer para esperar: “Um momentinho! Olha: talvez eu volte! Um momentinho!”
Aproxima-se, cerrando os dentes. Junto ao portão, bate palmas. Espera. Insiste. Nada ainda: “Será que não tem nin­guém?” Foi o seu pânico. E, fora de si, já ia entrar, quando surge uma mocinha na porta:
— Quem é?
A desconhecida empurra o portão e entra. Balbucia:
— Você é filha de Engraçadinha, não é?
Surpresa, a garota pergunta:
— Quer falar com mamãe?
E a outra, transfigurada:
— Eu sou Letícia. Sua prima! Prima de sua mãe. Letícia.
Desconcertada, Silene balbucia: “Letícia?” E a prima:
— Sua mãe não está? Eu espero. Há vinte anos não vejo sua mãe. Nunca ouviu falar de mim? Letícia? Você é a Engra­çadinha daquele tempo. Tão parecida! Ah, meu Deus, parece um sonho! Vinte anos! Seu nome é...
— Silene.
Disse, febril:
— Olha, Silene, eu vou esperar sua mãe. Vou despedir o chofer e volto.

*

Crispou a mão no braço do filho. Disse, baixo, com um mínimo de gestos, na sua violência contida:
— Escuta, Durval! Se você fizer alguma coisa, nunca mais. Olha que eu não estou brincando. Nunca mais falo com você. Escuta, Durval! Cala a boca! Nunca mais, e olha: você deixa de ser meu filho.
Ele falou baixo, também, com os lábios lívidos:
— Quem é esse sujeito para andar com a senhora? Anda com a senhora, por quê? Com que direito?
E a Engraçadinha:
— Eu não admito, nem aceito. Não admito suas obser­vações. Veja como fala!
Falava de rosto erguido. Como porém sentia que todos, ali, a olhavam, mantinha, com esforço, uma naturalidade quase doce e mesmo risonha. Teve uma audácia de mãe que conhece e domina as contradições e fragilidades do filho:
— Agora, vá falar com o Dr. Odorico. Vá, Durval.
Contrai a boca:
— Não.
E ela:
— Sou eu que estou mandando. Durval, olha que eu, bom! Venha! Durval, eu estou mandando.
Quando o rapaz passara por ele, o Dr. Odorico chegara a abrir a boca. Mas o ‘olá’ morreu-lhe no lábio. Durval virava as costas e recusava, com um acinte brutal, o cumprimento. Na sua humilhação, encostou-se no balcão, com as pernas bam­bas. (E o pior foi a náusea do medo. Além de idade, era, fisi­camente um frágil total, ao passo que Durval tinha uma vita­lidade ultrajante.) Teve de reconhecer: “Se ele me dá um tapa, me desarma!” Imaginou-se agredido, expulso a pescoções, na frente de todos, inclusive da mulher amada. Por um momento, esqueceu-se de que era juiz, de que podia até requisitar a força policial. Repetia para si mesmo: “Ah, um bofetão desse rapaz!” Súbito, crispa-se: Durval vem ao seu encontro. Um pouco atrás, Engraçadinha.
O rapaz estende a mão:
— Como vai, Dr. Odorico?
Instantaneamente, o juiz passa da angústia profunda para a euforia total:
— Ah, meu filho! Você está bem?
Batia-lhe nas costas pesadas. Pensa, no deslumbramento do pânico: “Esse menino é um touro!” Mas já Durval, trincan­do os dentes, inclina-se: “Com licença.” Engraçadinha, ao lado, ouve apenas, com um sorriso muito tênue. Dr. Odorico segura o braço do rapaz:
— Escuta, Durval! Eu vim falar com o Benício, perce­beu? É aquele aumentozinho. Agora, ouviu? É a hora! O Flu­minense venceu e o Benício está todo eufórico.
Durval interrompe, sem olhá-lo: “Seu Benício não está.” O juiz vira-se para Engraçadinha: “Não está, Engraçadinha, não está.” Durval despede-se:
— Tenho que trabalhar. Com licença. A bênção, mamãe.
Disse, com involuntária tristeza:
— Deus te abençoe.
Dr. Odorico baixa a voz:
— Esperamos? Quer esperar ou...
E ele:
— Vamos.
Caminham, rente ao balcão. Radiante, ele curva-se para dizer:
— Seu filho, Engraçadinha, é um rapagão. Parece um artista de cinema.
Descontente consigo mesma, Engraçadinha não responde. Na calçada, vêm caminhando, lentamente, na direção da Ave­nida. Dr. Odorico começa: “Hoje, sem falta, falo com o Ti­nhorão. Falo e digo mais: sou capaz de levar o Tinhorão e...” Param na esquina da Avenida. Súbito, Engraçadinha ergue o rosto duro:
— Odorico, eu fiz mal. Não devia ter saído com você. Sabe como é esse pessoal. Fala e eu... Dagora em diante, quando você quiser falar comigo, você faz o seguinte: dá um pulo lá em casa, quando o meu marido estiver e...
O juiz repete, atônito: “Quando o seu marido estiver?...” Olham-se. Então, Dr. Odorico sente novamente a dor e a cólera da frustração.
Segura Engraçadinha pelo braço:
— Olha, Engraçadinha! Você fala como se eu fosse nem sei o quê. Pois fique sabendo, ouviu? Fique sabendo que eu a amo. Eu a amo, Engraçadinha. Amo. Faça o que você qui­ser, mas eu amo você!

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