segunda-feira, 30 de novembro de 2009

CAPÍTULO LXXXIX

Crescia a tempestade, lá fora. O Wilson Figueiredo correu para fechar a janela. Os trovões começavam na Praça Mauá, rolavam pelo asfalto e vinham espatifar-se contra o Obelisco. E, por um momento, o juiz, junto à mesa de Wilson, teve uma espécie de alucinação auditiva. Parecia-lhe que velhas enchar­cadas davam gargalhadas cínicas nas ruas, esquinas e calçadas. (“Por que velhas?” eis o que perguntava a si mesmo.) Instinti­vamente, e disfarçando, bateu as três pancadinhas na madeira. Qualquer temporal remexia todas as suas fragilidades. (Desde garoto tinha medo de ser incinerado, mais dia, menos dia, por uma faísca desgarrada.)
Com a úlcera aflita, põe a mão no braço do amigo:
— Escuta, Wilson, olha aqui.
O outro tem uma discretíssima impaciência funcional:
— Espia, Meritíssimo. Está vendo? Tudo isso é matéria. Estou até aqui de serviço.
Dr. Odorico sente-se ‘o chato’ irremediável. Balbucia, ver­melho:
— Sei, sei. Compreendo. Mas olha: eu queria apenas que você me apresentasse ao Tinhorão. Pode ser?
Wilson faz o esforço de um sorriso:
— Um momento. Deixa eu mandar essa matéria. Pronto. O Tinhorão? — e grita: — Chama o Tinhorão aí! O Tinhorão! Vai lá no café!
Dr. Odorico baixa a voz, numa gratidão exagerada: “Você é um anjo!” Wilson apanha outra matéria:
— Eu gostaria de conversar com o senhor, mas é a hora, compreendeu? O diabo é a hora! Mas olha: o Tinhorão daqui a pouco está aí!
Sente no juiz uma humildade sôfrega e tem uma pena aguda. Ao mesmo tempo que passa os olhos na matéria e põe vírgula aqui e ali, vai falando: “O Tinhorão é um sujeito formi­dável!” Despacha a matéria e apanha uma outra: “O Tinhorão estuda literatura cearense. Entende pra burro de literatura cea­rense. É uma autoridade mundial de literatura cearense!” Já a figura do Tinhorão adquiria, para o juiz, uma dimensão apaixonante. O Wilson faz um silêncio. Novamente, o Dr. Odorico julga escutar na ventania as velhas em alarido, bruxas escorren­do da tempestade.
“E esse Tinhorão que não vem!” é a sua praga interior. Ao lado, alguém fala alto, com uma certeza exultante. Odorico vira-se: dois sujeitos discutem. Um deles, com uma voz cheia, abaritonada, está dizendo:
— Ah, eu gosto do Juscelino? É que ele tem uma transi­gência genial com os ladrões! Não põe os ladrões na cadeia!
— Não exageremos!
O outro, com a sua caixa torácica de Paul Robinson, conti­nuava, pomposamente:
— Escuta, deixa eu falar! O estadista que manda prender os ladrões é uma besta! Não se faz nada sem os ladrões! Nunca se roubou tanto no Brasil! E daí? Sem roubo não se tapa um buraco, não se abre uma rua!
Wilson Figueiredo já não ouvia, nem dizia mais nada. Concentrava-se agora com uma exclusividade total numa lei­tura importante. Era a opinião do jornal. Dr. Odorico prestava atenção à conversa política. O fulano dizia, agora, que os la­drões são criadores de vida. E não é com escrúpulos que as sociedades fazem os seus napoleões, os seus pedras, os seus ivans terríveis. Juscelino fazia muitíssimo bem em pôr vários gatunos em funções históricas.
Um rapaz aparece, junto à mesa:
— Que é que há, Wilson?
Dr. Odorico ergue-se. Wilson pergunta:
— Tinhorão, conhece o juiz Odorico Quintela?
O magistrado estende a mão: “Prazer.” Há no olhar do moço uma cintilação alegre: “Quer falar comigo?”
E o juiz, grave, quase fúnebre:
— Queria uma palavrinha, em particular.

*

Engraçadinha está perdida, perdida. A tempestade queima no matagal os seus clarões. Como louca, ela risca com as unhas as costas nuas de Luís Cláudio.
Balbucia:
— Posso morder?
— Morde.
No seu desespero, vira a boca e morde na curva do ombro, Só pára quando sente o gosto de sangue. Arqueja:
— Doeu?
E ele:
— Morde mais!
Maravilhada, olha, na carne, a marca dos seus dentes. Disse, num doce espanto:
— Tirou sangue!
Luís Cláudio passa o queixo no rosto de Engraçadinha. A sombra da barba queima a pele fina e macia. Ela repete, na sua obsessão: “Vinte anos!” Há vinte anos mordera assim um outro homem. Súbito, Luís Cláudio ergue o peito:
— Vamos sair?
Assombro:
— Sem roupa?
Ri, junto ao seu ouvido:
— Nua!
Trinca os dentes, num prazer mortal:
— Está maluco?
Mente, febril: “Nem meu marido nunca me viu nua. Completamente, não. Quando faço isso, suspendo o vestido, mas não tiro tudo.”
Pede:
— É um momento. Rápido. Só um momento.
Beija-o no peito:
— Não quero! — e pediu, baixo: — Morde um pouqui­nho, morde!
— Lá fora!
Implora:
— Aqui. Nua, eu não vou!
Engraçadinha sente o peso do peito forte. Geme: “Pode aparecer alguém!” Ele passa a mão por baixo e sente no antebraço a palpitação de suas costas:
— Escuta. Não há perigo.
— Tenho medo!
— Mas escuta. Deixa eu falar. Primeiro, escuta. Estamos fora da estrada. Escuta, Janet! Eu entrei por um atalho. Não passa ninguém por aqui. De mais a mais, olha a chuva. Queri­da, te juro. Escuta, Janet! A gente sai e entra logo. Um minuto. A gente se molha e volta. É, rápido.
Luís Cláudio abre a porta e sai. Batido de chuva, chama:
— Vem!
Tentada, resiste. Se Zózimo, se Odorico, o filho, se as fi­lhas a vissem assim! Sentada no carro, cruza as mãos sobre o peito. Atormentada do frio e da febre, balbucia:
— Eu vou, porque...
Luís Cláudio a puxa pelo braço:
— Vem!
Deixa-se levar. Lá fora, porém, corre para detrás do au­tomóvel:
— Mas não olha! Você está olhando! Eu não quero que você olhe!
Ele tem o riso encharcado de chuva:
— Eu não olho! Vem, que eu não olho!
Veio. O que ela queria dizer é que, há vinte anos, não tinha um momento seu, um momento de vida própria. Suas orações caíam num vazio implacável. Vivera um momento com Sílvio, na biblioteca. E, agora, subitamente, tinha outro mo­mento que ia passar também e que... Agarra-se a Luís Cláu­dio...
— Escuta! Estou aqui porque...
Luís Cláudio bebia a chuva na sua pele. Engraçadinha continua, ofegante:
— É um momento! Eu sei que depois, olha! Escuta!
Engraçadinha sentia-se duplamente adúltera: traía Zózimo e o juiz. Dr. Odorico não era nada seu, nem mesmo um flerte. Ainda assim, teve de ambos, do marido e do juiz, uma pena desesperadora. (Sentia também que traía um terceiro: o filho.) No meio da chuva, estava tentando viver (vivera tão pouco ou não vivera nada).
Crispa a mão no braço de Luís Cláudio:
— Sei que vou sofrer. Vou ter vergonha, remorso. Eu não devia estar aqui e estou.
Mas enquanto não vinha o desespero, queria viver até o fim o sonho da carne e da alma. Diz:
— Posso te fazer uma pergunta?
— Faz.
Vacila:
— Tenho vergonha!
— De mim?
— De ti.
Tudo lhe dá uma felicidade pânica. Gosta até de sentir os pés feridos nas pedrinhas. Luís Cláudio desprende-se. Corre. Mais adiante, estaca. Grita, de lá:
— Pára!
Engraçadinha não entende. (Bonito se aparecesse alguém!) E ele:
— Fica assim, que eu quero te olhar! Assim!
As chamas da tempestade vão morrer atrás das ilhas. Engraçadinha dá um rompante de infantilidade: “Tenho ver­gonha!” Vira-lhe as costas. Luís Cláudio atira o grito:
— Linda!
Agora, Engraçadinha experimenta uma brusca raiva de si mesma. Ela está novamente junto do ser amado (ou amado naquele momento). Ela prende entre as mãos aquele rosto vivo. (Gostaria de apanhar a água do chão para esfregar no próprio ventre.) Diz, rosto com rosto:
— Não tenho vergonha! Agora, não! Eu quero que me olhes muito! Olha! Pode olhar!
Ela própria recuou. Com uma graça instintiva, ergue a fronte, cruza as mãos na nuca. Pergunta, com uma voluptuosidade quase triste:
— Sou bonita?
Queria que Luís Cláudio guardasse a sua imagem para sempre. E quando ele a segurou, de novo, ela sente que vive agora para si mesma. É um momento tão pequeno, e passará tão depressa, que a mulher pode ousar tudo. Repete, fora de si:
— Coração, é um momento, um momento e nunca mais! Eu sei que nunca mais! Escuta, escuta! Sou eu que estou falan­do! Nunca mais te darei nada, nada! É o nosso momento! Pede, querido! Eu estou louca! Pede, enquanto estou louca! Olha como eu estou louca! Deixa eu te morder, deixa, — diz: Morder é tara?
Ri ainda no seu ouvido: “Tara é não morder!” E, súbito, ele quer saber:
— Faz a pergunta. Não tinhas uma pergunta? Qual é a pergunta?
Esconde o rosto no seu peito:
— Viste Les Amants?
O que houve depois. Perdeu a memória de si mesma. Nem sabia que estava deitada na terra encharcada. Deixou de ser ela mesma. Por um momento, foi um misterioso ser, feito de água, vento, planta.

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