domingo, 29 de novembro de 2009

CAPÍTULO LXXXVIII

Terminou a tortura de Petruscu. Amado Ribeiro vai saindo com o Delegado:
— Olha, Miécimo: faz o seguinte. Agüenta a mão, que eu vou buscar a Maria Aparecida.
O outro bate-lhe nas costas:
— Traz essa vaca, que eu vou botar um diante do outro.
Começava a chuviscar. Amado trepa no jipe:
— Escuta! Olha a minha exclusividade!
A autoridade, em pé, na porta da delegacia, faz-lhe um aceno de dedos. No jipe, e já a cem, o chofer grita: “Vem aí um toró brabo!” Uma hora depois, Amado Ribeiro salta em Paineiras. Na entrada, cruza com Eduarda, a arrumadeira, uma portuguesa nova, que tinha sempre uma palpitação de seios. O repórter pára e, já inquieto, com um surdo desejo, pergunta:
— D. Maria Aparecida está embaixo ou em cima?
Com uma roseta viva em cada face, o riso farto, a rapariga cobre a cabeça com um pano fino:
— Está lá com o irmão.
Amado retrocede:
— Irmão?
A moça ergue a cabeça, no seu ardor de fêmea vibrante:
— Olha que é bonito como uma virgem!
Já estava chovendo forte. Com um xale ligeiro, que pro­tege apenas a cabeça, Eduarda corre no aguaceiro. Amado Ri­beiro amarra a cara. Com o seu clarividente cinismo profissional não acredita nesse irmão súbito. Sobe, praguejando obsce­nidades. No andar de Maria Aparecida, cruza com um belo rapaz. Amado deduz: “O irmão de araque!” Ao passar por ele, o outro baixa a cabeça e aperta o passo. Amado Ribeiro nem bate. Mete a mão no trinco e entra. Maria Aparecida, de costas para a porta, vira-se, assustada. Está com um quimono leve e lindo, os pés em chinelinhas de arminho (uma vizinha, na véspera, trouxera sua roupa).
O repórter fecha a porta com o calcanhar:
— Escuta aqui. Esse cara que eu encontrei no corredor...
Interrompe, vivamente:
— Meu primo!
Ri, pesadamente:
— Então, eu viro as costas e você põe um sujeito aqui dentro?
Bate o pé:
— Primo!
E ele, duro:
— Agora é primo, deixou de ser irmão? Vem cá!
Rápido e brutal, abre o quimono da outra. Diz, arquejante de raiva:
— Em cima da pele! Recebe os seus parentes nua! Des­pe-se para os primos!
Trêmula, fecha o quimono e recua. Quis ser insolente: “Veja como fala!” Agarrou-a pelo pulso:
— Muito cínica! Você não me disse. Escuta! Cala a boca! Você não disse que eu era o primeiro, sua descarada?
Puxa o braço:
— Está me machucando!
Amado a empurra. Por um momento, de costas para ela, fica olhando a cama, o lençol puxado, um travesseiro no chão. Prendendo o quimono na altura do seio, Maria Aparecida ergue a voz:
— Não fala assim comigo. Você não é nada meu! Quem é você? Nem meu pai, que era meu pai. Meu pai nunca gritou comigo!
O repórter estava sentado na cama. Levantou-se e veio espetar-lhe o dedo no peito:
— Não quero conversa! Tira esse quimono! Tira, põe a roupa, que vai sair comigo!
Tem um repelão:
— Então, sai, anda! Tinha graça, eu me despir na sua frente!
Amado ri, feroz:
— Que pudor é esse? Vocês, mulheres, são umas viga­ristas! Desde quando você tem vergonha? Outro dia, você desfilou pra mim e pelada, aqui mesmo!
Ela respira forte: “Ah, se ódio matasse!” De costas para o repórter, deixa cair o quimono e, chorando, veste-se, furio­samente. Houve um momento em que teve de pedir:
— Quer abotoar aqui nas costas?
Amado inclina-se um pouco. Ela continua:
— E outra coisa: o meu primo...
Berra:
— Deixa de ser mentirosa! Primo onde?
Vira-se, feito uma fúria:
— E daí? Pois não é primo, nunca foi primo e que é que você tem com a minha vida? Mania de se meter! É um rapaz que. eu conheço, que gosta de mim há muito tempo!
Na sua irritação, vai pôr as meias. Senta-se na cama:
— Onde é que eu estava mesmo? Ah, sim. Esse rapaz é de opinião que. Ele me disse: “Não dá palpites. Não há provas e...” De fato, eu não vi. Vi? Não vi.

*

Luís Cláudio inclina-se novamente. Pergunta, com uma voluptuosa obstinação:
— Você não está em meu poder? Está em meu poder. Prefere passar a noite comigo ou me dar um beijo na boca?
Soluça:
— Tenha pena! Ao menos isso: — pena!
Quis apanhar sua mão. Ela grita:
— Não me toque!
Luís Cláudio deixa passar um momento. Baixa a voz:
— E se eu lhe der a minha palavra de honra? Quer fazer um trato comigo? Deixa eu continuar! É o seguinte: se eu lhe der a minha palavra de honra que a levo, ouviu? Depois do beijo, eu a levo, imediatamente. Levo-a para onde quiser.
Disse, ofegante:
— Leva?
— Palavra de honra.
Por um momento, Engraçadinha olha esse rosto tão belo e tão próximo.
Fala com a respiração curta, quase sem voz:
— Posso fazer isso, mas o senhor sabe? Não sabe que... Que é contra a minha vontade? — pausa e olha para o alto, ao mesmo tempo que fala apaixonadamente: — Deus sabe que eu não quero, que eu não desejo! Deus sabe! Sabe!
Ele aproxima o rosto, fecha os olhos. Engraçadinha vacila ainda. Por fim, roça com os lábios a boca do rapaz. Quer recuar, mas Luís Cláudio a agarra; trinca os dentes:
— Isso não é beijo! Não é nada!
Engraçadinha foge com a boca:
— Amo meu marido!
Com a mão, por trás, ele agarra seus cabelos e imobiliza o rosto:
— Eu quero um beijo assim!
Engraçadinha sente a boca ativa, devoradora. Os lábios que esmagam os seus. Pensa no momento em que, há muitos anos, ela se entregara a Sílvio, no divã da biblioteca. A boca de Sílvio, o hálito, a saliva de Sílvio. E, súbito, a mão de Luís corre dentro do decote. Novamente, Engraçadinha lembra-se da biblioteca (vinte anos) quando sua nudez se enroscara.
Terminam o beijo. Olham-se.
Ele pergunta:
— Gostou?
Atônita, balbucia:
— Amo meu marido!
E ele, passando a mão pelos seus cabelos:
— Não foi tão simples? Eu te beijei, você me beijou. Sim­ples. Você é a mesma. O beijo não mudou nada. Mudou?
Engraçadinha vira o rosto:
— Agora vamos.
Disse, quase sem mover os lábios:
— Ainda não.
Empertiga-se:
— Por quê?
Vacila:
— O beijo é apenas o princípio. Não é apenas o princípio? É apenas o princípio.
Encara-o:
— Que princípio?
Aproxima o rosto:
— Deixa eu te dizer baixinho. No ouvido. Chega pra cá. Baixinho.
Geme:
— Diz daí.
Ele, porém, passa o braço e a puxa para si:
— Assim. Está com frio? Coitadinha, está com frio. Mas escuta, olha.
— E sua promessa?
Luís Cláudio fala e o seu hálito faz-lhe cócegas na orelha:
— Primeiro, escuta. O beijo, presta atenção, o beijo é o começo. Você me beijou e eu te beijei, filhinha. Mas falta muito.
Transida, pergunta:
— O que é que você quer de mim?
E ele:
— Tudo!
Quer fugir com o corpo. Luís Cláudio a subjuga, ao mesmo tempo que a beija no pescoço. Engraçadinha grita:
— Não! Não!
Beija mais. Sua mão passa pelo corpo. Novamente, corre dentro do decote. Engraçadinha luta, esganiça a voz:
— Não quero! Eu gosto do meu marido! Está machu­cando! Não!
Luís Cláudio desce todo o decote:
— São lindos! Pequenos e lindos!
Ela está fora de si:
— Cão! Bandido! Me larga! Seu miserável! Não tiro! Ah, cão! Você... me paga... Paga. Ai!... Não deixo...
Ao mesmo tempo que luta, não lhe sai da cabeça a ima­gem do amor antigo: os pés livres e nus, trançados no alto. Repete:
— Oh, seu cão! Ah, mise... miserável... Não, não que­ro...
A voz lhe foge. Súbito, enfia os dedos nos cabelos do rapaz. Está perdida, perdida:
— Querido, ah, querido. Vou morrer, querido. Amorzi­nho, amorzinho... Ah, querido, não, querido. Vidinha, oh vidinha! Não faz assim. Não quero!

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