terça-feira, 1 de dezembro de 2009

CAPÍTULO XC

Quando ele quis entrar no automóvel, Engraçadinha co­briu-se, com um pudor selvagem:
— Saia! Saia!
Fez espanto:
— Deixa que eu te enxugo!
Curvada sobre si mesma, com um pedaço de pano sobre os seios, esperneou:
— Vai embora! Vai embora!
Por um momento, com uma surpresa divertida, Luís Cláu­dio a contempla. Disse, por fim:
— Chama, quando acabar! E olha: enxuga com a minha camisa! Apanha a camisa! Pode enxugar!
Grita:
— Quer sair?
Luís Cláudio vem para fora. Em pé, na frente do carro, recebe toda a chuva, todo o vento. Passa um clarão a caminho das ilhas. Ele parece incendiar-se. No interior do automóvel, Engraçadinha enxuga-se, rapidamente; tem ódio de si mesma e dele. Finalmente, vestida, abre um pouco o vidro e chama:
— Pode vir!
Luís Cláudio corre. Engraçadinha foge para a extremidade do assento. Fica de costas, para que ele se vista. Luís Cláudio baixa a voz:
— Quer que eu enxugue teus cabelos?
Grita:
— Não me toque!
Engraçadinha abaixa a cabeça, cobre o rosto com uma das mãos. O outro, enfiando a camisa, vai falando: “Talvez você se resfrie! Quando chegar em casa, olha...” Abotoando a camisa, continua:
— Nós podemos passar numa farmácia e...
Corta, violenta:
— Estou rezando!
E ele, com uma ironia terna:
— Desculpe.
Engraçadinha, porém, pára a oração no meio. Sente que é inútil continuar. (Gostaria de rezar com toda a paixão. Mas o que sente em si é um vazio de ódio, de amor, de tudo. Se ao menos pudesse amar! Se ao menos pudesse odiar!) Luís Cláudio inclina-se:
— Está com raiva de mim?
Volta-se:
— Por que é que o senhor é tão cínico?
Foi delicado, mas firme:
— Escuta! Um momento! Quer deixar eu falar? Janet, olha, Janet: não exageremos!
Engraçadinha começa a chorar:
— O que o senhor fez, ouviu? O que o senhor fez foi uma indignidade! Um papel indigno de um homem! Eu sou uma senhora casada e o senhor se igualou a esses bandidos!
E ele:
— Continue! Continue!
Fora de si, gritava:
— Não adianta a sua ironia! O senhor é um debochado!
— Sou.
— E reconhece?
Respondeu, terno:
— Reconheço.
Tomou-se de verdadeira insânia:
— O senhor merecia um tiro!
Acende o cigarro:
— De acordo.
Essa polidez a um tempo persuasiva e cínica a enfureceu. Teve vontade de esbofeteá-lo. Canalha! Pensa: “É forte, mas o Durval é mais forte! Se Durval sabe, ah, se o Durval descon­fia!” Imaginou os dois numa luta de vida e morte. E o pior é que ela continuava com a sensação de que também traíra o filho.
Geme:
— O senhor há de pagar! Não pense que...
Estaca. Dir-se-ia que alguém, uma voz secreta, mas nítida, está soprando: “É mentira!” Engraçadinha tem uma súbita consciência de que é, sim, mentira, tudo mentira. Sente que é falsa a sua cólera, falso o seu ódio. Toda a sua violência é representada. Finge para ele e para si mesma. Imaginara que, depois do prazer, viria o desespero. Mas a volúpia extinguira-se no fundo do seu ser. Estava pronta, vestida, e não sofria ainda. “O que é que há comigo, meu Deus do céu?” E como não conseguia sofrer, teve ódio de si mesma e dele.
Disse, de perfil para ele:
— Vamos?
Põe o motor para funcionar:
— Quer que eu deixe onde?
Responde, hirta:
— Tijuca.
O automóvel parte. Há, inicialmente, uma ondulação da carroceria. Viajam alguns momentos em silêncio. Ele tosse li­geiramente:
— Mas você não responde se está com raiva de mim?
Contrai a boca:
— O senhor tenha a bondade de não falar comigo! Faz favor!
Desta vez, Luís Cláudio cedeu a uma pequena irritação:
— Não faça assim porque... Escuta, meu bem. Sejamos honestos. De fato, fui eu que trouxe você. Devia levá-la à Can­delária e mudei o caminho. Está certo. Mas depois você aderiu. Não aderiu? E outra coisa que eu não devia dizer, mas vou dizer porque... Responde: não foi você que falou em Les Amants?
Saltou no assento:
— Olha aqui! Isso é outra indignidade sua! E se eu cedi, ouviu? Se eu cedi é porque... — começa a chorar. — Essa natureza miserável! Por isso é que acho o sexo uma porcaria! O senhor nunca teria o direito de alegar... Porcaria de sexo!
Mergulha o rosto nas duas mãos. (Sofria enfim! Que delí­cia chorar! “Não sou sem-vergonha! Estou chorando! Graças a Deus tenho sentimento!”) Luís Cláudio deixa passar uns cinco minutos. Pergunta:
— Você não quer falar mais comigo?
Passa a mão no nariz:
— Nunca mais!
Admite:
— Faz bem.

*

Afastam-se da mesa do Wilson. Dr. Odorico pensa: “Pre­ciso ser hábil. Não posso assustar o pássaro!” Ao mesmo tempo, continuava com o problema da ventania. Como o Oto Lara Resende, era um apavorado nato diante das tempestades. (Cer­tas ventanias davam-lhe vontade de chorar.) Passa o braço em torno de Tinhorão, com uma discreta autoridade paternal:
— Aqui tem um lugar, onde se possa... Entende, não entende? Um lugar conspirativo... — riu.
— No café.
Subindo a escada, devagar (olha o coração), o juiz pensa em Engraçadinha debaixo do toró. Pára um momento; explica:
— Já não sou criança.
(O coração está meio alterado.) Chega ofegante. O Ti­nhorão vai na frente: “Por aqui!” Finalmente, instalam-se numa mesa. Dr. Odorico olha em torno, surpreso; faz para si o co­mentário escandalizado: “O negócio aqui é meio sujo!” Enquan­to o garçom vai trazer uma média, pão e manteiga para o Tinhorão, e água tônica para o juiz, este começa:
— Meu filho, o negócio é o seguinte. Você é novo. Que idade você tem? Pois é: muito novo. Eu também já fui moço e nessa idade...
Tinhorão acha meio estranho, quase espectral, esse juiz que de repente invade sua vida em plena tempestade. Todavia, sua capacidade de espanto é mínima. E, de resto, aquela venta­nia lança no café uns trêmulos de último ato do Rigoleto. Espera o resto. Súbito, Dr. Odorico faz, cavo, a pergunta:
— O amigo conhece uma menina. Chama-se Silene.
O rapaz pula:
— Silene? Muito! Ficou de telefonar! Não telefonou!
Para o juiz, a exuberância de Tinhorão parece suspeita e desagradável. O rapaz continuava:
— Eu disse: “Telefona!” Dei o número e não telefonou. Gozado: não telefonou! E olha: eu arranjei pra Silene ser capa do Cruzeiro! Vai sair na capa do Cruzeiro!
O espanto do juiz foi sincero e profundo:
— Do Cruzeiro?
— Ou da Manchete!
Dr. Odorico começava a achar o Tinhorão uma surpresa ininterrupta. Pigarreia: “Quer dizer que o amigo...” Foi ta­xativo :
— O Acioli me pediu. O Acioli é o diretor do Cruzeiro. O Acioli encontrou-se comigo e me pediu, compreendeu? Quer que eu arranje umas caras bonitas pra capa. Eu disse: “arran­jo”. E a Silene é uma das capas. E não telefonou? Aliás eu conheço o Justino, da Manchete. Também conheço o Justino, o Acioli!
Atônito, Dr. Odorico contempla o Tinhorão. A úlcera começa a reagir contra tamanho cinismo. Ele pensa: “Esse rapaz é um perigo!” Todavia, resolveu ser hábil:
— Meu filho, você permite que eu lhe dê um conselho? O conselho da idade? Presta atenção: o justo, o correto nesses casos. Em se tratando de uma menina de família. O justo é que o homem freqüente a casa da moça, entende?
Tinhorão ergue-se, como se já quisesse partir:
— Claro! Vamos lá! O senhor tem o endereço? Vamos lá!

*

Engraçadinha ia ficar na Praça Saenz Peña. De lá, tomaria a condução definitiva. Quando dobram a Granado, ele per­gunta:
— Você vai me dar um beijo por despedida?
Teve ódio desse homem:
— O senhor é um canalha!
Ele encosta no meio-fio da praça. Pára. Puxa Engraçadi­nha e a vira. Começou um beijo na boca.

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