sexta-feira, 27 de novembro de 2009

CAPÍTULO LXXXVI

Virou-se, atônita:
— Odorico!
O juiz, com palpitações, falta de ar, teve ainda a sensação de que o chão lhe faltava e que um abismo súbito ia arrastá-lo. Continuou, fora de si:
— Amo-a! Ninguém manda nos próprios sentimentos! Amo-a!
E, ao mesmo tempo, pensava na reação da bem-amada. Admitiu até, entre outras, a hipótese de uma bofetada. Ima­gine ele, juiz, esbofeteado e... Crispada, Engraçadinha co­meça:
— Eu nunca pensei que, nem lhe dei esse direito. Lhe dei esse direito, Odorico? Não podia imaginar que você tivesse outras intenções. Pensei que, mas vejo que me enganei!
Ela começa a chorar. Depois de olhar para os lados — o casal já estava chamando atenção — o juiz, ofegante, puxa Engraçadinha pelo braço:
— Vamos sair daqui.
Quis resistir:
— Tira a mão.
E ele, entre dentes, no pânico de um escândalo:
— Estão olhando, Engraçadinha. Chega aqui.
Ficam diante de uma vitrina, como se estivessem exami­nando o mostruário. Engraçadinha tira um lencinho da bolsa; assoa-se, ligeiramente. Ao lado, Dr. Odorico está a um tempo arrependido e radiante. Arrependido da coragem e, simultanea­mente, aliviado de uma angústia que o entalava. Uma audácia puxa outra. “Vou até o fim”, decidiu. Com uma abundância verbal que lembrava o Oto Lara, exaltou-se:
— Miserável mundo, Engraçadinha! — e repetiu, para gravar o efeito auditivo: — Miserável mundo, em que o amor ofende, o amor ultraja, o amor humilha! Se eu odiasse uma se­nhora casada, poderia anunciar este ódio, aos berros, em cada esquina. Nem o marido, nem o filho desta senhora pensariam em caçar-me a pauladas, no meio da rua. Mas eu amo. Não é ódio, é amor. E já que é amor, sou obrigado a calar. Não posso nem confessar que amo.
Pára, arquejante. Imaginava a impressão que podia ter o Oto, se estivesse ali. “O Oto havia de gostar”, disse para si mesmo. Engraçadinha deixava-se envolver por essa veemência. O juiz fez ironia:
— E já que é amor, e não ódio. Já que é amor que eu sinto por si, você tem todo o direito, Engraçadinha. Sim, todo o direito de me desprezar, de me escorraçar. Todo o direito!
Ergueu o olhar, muito puro e muito lindo:
— Não é bem assim, Odorico. Você está sendo injusto. Não é bem assim. Eu sou casada, tenho filhos. Um filho ho­mem. E não fica bem...
Interrompe, veemente:
— Escuta, Engraçadinha! Ah, não! Espera lá! Você não me entendeu. Você fala como se, por acaso, eu fosse, com per­dão da palavra, um fauno, um sátiro. Pelo amor de Deus! O meu amor não exige, nem pede nada. Eu quero apenas ter o direito, veja bem: apenas o direito de amá-la. E esse amor sem esperança basta, Engraçadinha. Entende agora? No meu amor, a matéria não entra. O físico fica de fora.
Fez a pergunta, sem olhá-lo:
— Amor espiritual?
E ele, impulsivamente:
— Só espiritual! Amor puro, Engraçadinha. Agora res­ponda, olhando para mim: você permite que eu a ame assim? Note bem: sem esperança? Permite?
E, ao mesmo tempo que esperava a resposta, desejou-a co­mo nunca.
Engraçadinha suspira, com o olhar perdido:
— Assim, está bem.
Numa felicidade mortal, ele já se despede:
— Escuta, Engraçadinha: olha. Eu vou passar, agora, ouviu? Agora mesmo, ali, no Wilson Figueiredo. O Wilson é de toda a confiança. Pois bem: ele vai me apresentar a esse Tinhorão. E te digo o seguinte: ou esse Tinhorão casa ou vai pra cadeia. Pode ficar descansada. Ponho na cadeia o Tinhorão.
Despediram-se, ali. Em pé, na esquina de Sete de Setem­bro, Dr. Odorico pensa: “Hoje, mesmo. Ainda hoje, vou tratar do apartamento.”
Naquele momento, começou a chover.

*

Leleco agarrou-a:
— No teu quarto!
Reagiu:
— Lá, não!
E ele, boca com boca:
— No quarto de tua mãe!
A menina não podia imaginar que o rapaz queria esque­cer. Desde o momento do crime, ele só pensava em Cadelão. De noite, sonhava com o morto e só com o morto. Via-o no caixão, as duas mãos unidas como duas irmãs, duas gêmeas; os pés ligados, também; os cílios intensos, o perfil diáfano da morte. Um perfume de círios, de flores fanadas atravessava todo o sonho. Desejou Silene para esquecer o morto.
Puxou-a:
— Vem!
— E se chegar alguém?
Ali, não. Se fosse no Bar do Pepino. Ou em qualquer lugar, menos ali. Podia entrar a mãe, ou o pai, ou, ainda, o irmão. Se Durval a encontrasse no quarto, com Leleco. Se Dur­val a surpreendesse, lá, ele mataria os dois e, depois, se mataria. Quase chorando (não queria pensar mais no morto), Leleco soluça:
— É rápido!
Numa loucura de mãos, arranca a blusa da menina. Pede, ainda:
— Tira tudo!
Silene ia para o quarto, quando bateram, lá fora. Rapida­mente, apanhou a blusa. Dá o muxoxo:
— Não disse?
Ele arqueja:
— Vai e olha: não demora!
Fica na sala, esperando. Ouviu uma voz de mulher, que não identificou. Oh, meu Deus! Imaginava os sapatos do morto, os sapatos de verniz do morto. Finalmente, Silene volta:
— Imagina! Uma prima de mamãe! Chegou do Espírito Santo! Bonitona!
— E eu? Bolas! Essa chata! Que peso! Logo agora!
Finalmente, aparece Letícia. Silene apresenta Leleco como “um afilhado de mamãe”. Letícia senta-se e tirando a luva — luva de renda — suspira:
— Eu aceito um copo d’água. Quer arranjar?
A geladeira já está na sala. Depois de beber — “Agrade­cida” — Letícia suspira:
— Depois que sua mãe saiu de lá, eu me casei. Casei e, há coisa de seis meses, meu marido faleceu. Foi então que eu...

*

Subitamente, caiu a chuva. Na calçada da Avenida, de frente para o Jornal do Brasil, Engraçadinha corre para de­baixo da primeira marquise. De um lado e de outro, foi a mesma correria. Magicamente, começaram a aparecer guarda-chuvas por toda a parte. Água e vento. “E agora?”, pensou En­graçadinha, desesperada. Teria de esperar uma estiagem. Se pudesse avisar a Durval! Gaiatos irresponsáveis, de calças já arregaçadas, davam gargalhadas debaixo da chuva. Meia hora depois, a cidade continuava perdida no aguaceiro.
Súbito, ouve uma voz, ao lado:
— Minha senhora, com licença.
Vira-se, assustada. Era um rapaz, vinte oito, trinta anos, de peito largo, bem vestido, uma pupila docemente azul. Incli­nou-se diante dela, com uma simpatia discreta e nobre:
— Está sem condução, minha senhora?
Riu, nervosa (molhada no peito e nas costas, começava a ter frio):
— Justamente. Eu teria de apanhar o lotação na Cande­lária. A chuva me apanhou no meio do caminho. Só quando estiar.
Delicado e sóbrio, ele insiste:
— Meu carro está ali adiante. Se a senhora quiser, eu apanho o carro e terei muito prazer em levá-la até a Candelária.
— Não precisa se incomodar. Obrigada.
O rapaz teve um sorriso leve:
— Minha senhora, a chuva não vai passar tão cedo. A senhora já está molhada, vai se resfriar.
Ela acaba de sentir um pingo na ponta do nariz. Apanha o lencinho para enxugar o rosto. Suspira: “Me molhei!” E ele, tenaz:
— Mas não custa, minha senhora. Daqui à Candelária é um pulo. Levo a senhora. Permite?
Tem um último escrúpulo. Por fim, responde:
— Aceito.
— Então, a senhora espera aqui, que eu volto já. Não de­moro. Até já.
Engraçadinha pergunta a si mesma: “Será que fiz mal?” Ao mesmo tempo, suspira: “É uma distância pequena. Parece um rapaz educado.” Enquanto trocavam palavras, ela obser­vara a pele do desconhecido, sem uma espinha, uma mancha, de um moreno dourado de praia, uns dentes perfeitos e os lábios finos e meigos. (E, sobretudo, o azul violento do olhar.) Espera cinco, dez minutos. E, súbito, encosta no meio-fio, um mara­vilhoso carro. Ouve a buzina. Reconhece o outro, chamando-a. Vacila ainda uma vez. Acaba correndo, ensopando os sapatos altos, os ombros, todo o vestido. Entra no automóvel, enchar­cada e ofegante. Ele está dizendo:
— Levanta o vidro! Levanta o vidro!
Batido pelo vento e pela chuva, o automóvel arranca, Engraçadinha abre, de novo, a bolsa: enxuga o rosto, o pes­coço, a nuca. Exclama: “Que barbaridade!” No carro fechado, tem uma sensação de paz, de segurança. Vira-se para o rapaz:
— O senhor me deixa, sabe onde?
Ele ri alto:
— Não! A senhora é minha convidada! Não vou levar a senhora para a Candelária. Considere-se raptada!
Naquele momento, Engraçadinha teve vontade de gritar.

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