sábado, 28 de novembro de 2009

CAPÍTULO LXXXVII

Junto ao teto, a pequenina lâmpada ardia para o S. Jorge. Lá fora, começava o temporal. Silene ergue-se:
— Ih! Tenho que apanhar a roupa!
E Letícia:
— Eu ajudo!
Virou-se:
— Não precisa.
A outra, porém, acompanha:
— Ajudo, sim.
Na cozinha, Silene tira os sapatos. Corre descalça para o pequeno quintal. Encharca-se de água. Recebe chuva no peito, no rosto, no pescoço. Gotas correm entre os seios. Ri, numa ágil e frenética infantilidade:
— Toma! Toma!
Vai passando a roupa que Letícia abre na cozinha. A mais velha deixa-se possuir por uma euforia quase dolorosa. Diz para si mesma: “Como é linda!” Enquanto o trovão de­saba do alto, Letícia grita:
— Vai se gripar!
A menina ergue o rosto, o busto. Tem chuva até nos den­tes. Tirada da corda a última peça, abre os braços e fica, um momento, parada, numa alegria selvagem. Pequeninas gotas correm da orelha e morrem no ouvido.
Letícia chama:
— Menina, entra! Vem, menina!
Obedece, finalmente. Corre para o quarto. Letícia vai atrás nervosa. Entra e, rapidamente, fecha a porta a chave. Pergunta, depois de olhar em torno:
— Tira a roupa, anda! Tira a roupa! Escuta: onde é que tem toalha?
Letícia vai apanhar e volta (sente-se febril):
— Eu te enxugo!
Espera, um instante, que Silene dispa-se completamente. Sôfrega, contraída, ordena:
— Tudo! Tira tudo! Está com vergonha, menina? Olha aqui: pudor em demasia é defeito!
Incerta, Silene tem um vago escrúpulo:
— Pode deixar, que eu mesma enxugo!
Estendia a mão para apanhar a toalha. Letícia, porém, disse que não, não, que absolutamente:
— Eu podia ser sua mãe. Vira, anda.
Silene dá-lhe então as costas. Antes de passar a toalha, Letícia olha as costas, cheias de gotas estilhaçadas; os quadris, as coxas, as pernas, o calcanhar róseo e perfeito.
Balbuciou, enquanto passava a toalha:
— Você tem um corpo que. Olha: eu me criei junto com Engraçadinha. Muitas vezes, tomamos banho juntas. Engraça­dinha sempre teve um corpo como eu nunca vi. Mas o seu, ah, como o seu! Escuta: não é toda mulher que resiste ao maillot. Ah não!
Ela queria dizer que a nudez é um perigo para a maioria das mulheres. Rara é aquela que pode ficar nua. Silene suspira, passando a mão pelos cabelos encharcados:
— O corpo de mamãe é muito bonito!
Letícia está agora de joelhos. Enxuga as pernas da menina (pede por tudo que não chegue ninguém). Do lado de fora, Leleco está sofrendo. Só deixa de pensar no morto quando so­nha com a nudez de Silene. O desejo faz com que ele esqueça o crime. “Eu sou assassino”, repete para si mesmo, até satu­rar-se: “Sou assassino!”
No quarto, Letícia pede, com a garganta contraída:
— Vira! Vira de frente!
Apanhou na toalha o pé da pequena. Tudo, em Silene, é bem feito, delicado, irretocável. Disse (como que em adoração):
— Teus pés são lindos!

*

Em grande velocidade, ele abre um riso forte e bonito:
— Teve medo?
Ainda crispada, ainda ofegante, respondeu:
— Um pouco!
— Ou muito?
Suspira:
— Quase gritei!
Fez um alegre escândalo:
— Por que, meu Deus do céu? Quer dizer que eu... Antes de mais nada: eu não sei o seu nome, nem a senhora o meu. Eu me chamo Luís Cláudio. E a senhora?
Engraçadinha olha pelo vidro e toma um susto:
— Já passamos a Candelária! O senhor está me levando para onde? Eu vou saltar. Pára. Quer fazer o favor de parar? O senhor quer fazer o favor? Por obséquio!
E ele:
— Primeiro, o seu nome. Dei o meu. Agora o seu. Qual é o seu nome?
— Cavalheiro, o senhor já está passando dos limites. Não faça isso comigo! Eu sou uma senhora casada. Tenho filhas, um filho homem. O senhor pára. Eu salto em qualquer lugar. Mas cavalheiro!
O outro não perde a naturalidade:
— Primeiro, o nome. Quero seu nome.
Aterrada, diz o primeiro que lhe vem à cabeça:
— Janet.
Ele repete, como quem saboreia:
— Janet. Nome gostoso. Janet. Escuta, Janet. Vamos fazer um pacto.
Desesperada, interrompe: “O senhor quer me fazer o fa­vor? O senhor pára que eu salto, pronto!” Espiando pelo vidro, ela já não reconhece mais as casas, as ruas, as avenidas. O carro desenvolve uma velocidade mortal. Faz a pergunta pânica:
— Para onde o senhor me leva?
— Avenida Niemeyer.
Toma-se de um medo feroz: “Mas o senhor está maluco? Cavalheiro, eu sou uma senhora de família. O senhor procura uma mais moça. Um broto. Procura um broto.” Ele não perdeu a calma:
— Janet, escuta, Janet! Eu estou tratando você bem. Não é exato? Muito bem. Estou respeitando você. Não estou?
Começou a chorar:
— Ou o senhor pára ou eu abro a porta e me atiro.
Foi quase meigo:
— É uma idéia. Abra a porta, atire-se e boa viagem.
Empertiga-se:
— O senhor é muito cínico!
— E daí?
Silêncio. Engraçadinha está aterrada. Pelo vidro, só vê mataria: “Cavalheiro, eu sou, inclusive, protestante. Protes­tante. Sabe o que é protestante?” Responde com outra pergunta:
— Janet, onde é que você mora?
Mente, furiosa:
— Tijuca.
E ele:
— Presta atenção. Eu te levo agora na Tijuca, já. Na Tijuca. Se você me der um beijo.
— O quê?
Sua vontade foi ter um ataque, ali. Ele faz troça:
— Janet, escuta. Eu disse um beijo. Sabe o que é beijo? Sabe. Você nunca foi beijada? Foi. Está fazendo essa cara por quê?
Berrou dentro do carro:
— Eu já disse que sou casada! E outra coisa! Parece que o senhor nunca viu uma mulher séria na sua vida. Pois fique sabendo que eu sou séria! O senhor pode pintar e bordar, que comigo, ouviu? Comigo o senhor não arranja nada!
Suspira:
— Paciência. Não quer, não serei eu que... Nem vou forçar nada. Mas quero só avisar uma coisa.
— Pelo amor de Deus!
Ele foi implacável:
— Janet, escuta. Deixa eu falar. Ouve. Das duas uma: ou você. Escuta, Janet, não atrapalha. Ou você dá o beijo e eu te levo na Tijuca, agora. Ou você não dá o beijo e vamos passar a noite rodando. Escolhe.

*

Dr. Odorico estava, há cinco minutos, esperando uma folga do Wilson Figueiredo. Este acaba de mandar uma matéria para a oficina e volta-se para o juiz:
— E aquele caso? Do soneto do Oto? Está caprichando?
Dr. Odorico aproxima a cadeira (quer um diálogo co­chichado):
— Pois é. Sobre isso, justamente. Entreguei, hoje, à dama, a chave de ouro. Parece que gostou. Primeiro, sabe como é. Fez aquele chiquêzinho, mas é natural.
Wilson interrompe:
— Um momento. Deixa eu mandar esse aviso fúnebre pra oficina. Fala. Quer dizer que ela delirou?
Corrige:
— Em termos. Delirou em termos. Mas eu preciso, com­preendeu? Amanhã, devo entregar o outro. E queria aquele favorzinho teu: que você fizesse o verso. Tem que ser já. Es­creve aí qualquer coisa.
Wilson coça a cabeça:
— Escuta, Meritíssimo. Estou atolado. Olha: está vendo? Tudo isso é matéria. A hora é imprópria pra burro. A hora pior.
Aflito (e humilhado), o juiz põe a mão no braço do jornalista: “Wilson, e a minha situação? Estou num beco sem saída. Com que cara eu vou aparecer, hem, com que cara?” Súbito, o Wilson pula:
— Bolei uma idéia. O senhor conhece o Marcelo Tava­res? Não conhece? Deve conhecer. O Marcelo Tavares, da Con­federação Nacional da Indústria, advogado. Telefona ao Marcelo Tavares em meu nome. Um momento, Meritíssimo. O Marcelo, que é uma grande figura, tem um livro de versos. É o único que tem esse livro. De um poeta mineiro, o Jesus Miranda. Toma nota do título. O livro chama-se As Mil Mu­lheres que eu Amei. Um soneto para cada mulher.
Ao lado, um pouco assustado da exuberância numérica, Dr. Odorico escrevia:
— As Mil Mulheres que eu Amei.
O Wilson instigou:
— Mil sonetos! Verso que não acaba mais! Não há mais problema...

*

Rodam ainda meia hora. O carro vara o aguaceiro. Fi­nalmente, Luís Cláudio pára. Apanha um cigarro e o acende:
— Estamos no mato. Você decide: se quer me dar um beijo ou passar a noite comigo.
Silêncio. Engraçadinha diz, por fim:
— Dou esse beijo. Dou. Mas olha: contra a minha von­tade e achando que é uma indignidade, ouviu? Uma indigni­dade!
Luís Cláudio fica de frente:
— Pronto.
Crispada, aproxima o rosto e roça com os lábios a face do rapaz. Ele faz, ali, um pequeno escândalo:
— Mas oh! É isso? Ah, não! Tem paciência. Eu disse beijo. Beijo de verdade. Na face não é nada. Beijo de verdade é na boca. Você é casada. Sabe que beijo mesmo é na boca. Vem, anda: beija, me beija na boca.
Berrou:
— Nunca! Nem morta! Você tem que me matar primeiro!

Nenhum comentário: