sábado, 12 de dezembro de 2009

CAPÍTULO CI

Engraçadinha foge com o rosto:
— No céu da boca, não! Não faz assim! Meu bem, eu não agüento! Não, Luís, não!
Agarrou-a pelos dois braços:
— Vem cá! Escuta, Janet, olha! Escuta!
Cai com os ombros, esconde a cabeça:
— Pelo amor de Deus, Luís! Olha, deixa eu falar! Eu não agüento! Filhinho, escuta!
Agora ele apanha o rosto de Engraçadinha entre as mãos:
— Uma vez só!
Ofegante, resiste:
— Meu bem, não está em mim. Se você fizer isso outra vez, sou capaz de gritar. Eu grito, e responde: você quer que eu grite? Que eu dê escândalo? E, além disso, aqui não. No claro, não, Luís! Está claro! Meu filhinho!
Puxa Engraçadinha para si. Ela está com o ouvido no seu coração forte. Baixa a voz:
— Querida, eu vou viajar.
Ergue o rosto:
— Você?
E ele:
— Parto amanhã.
Engraçadinha começou a sofrer:
— Para onde?
Luís Cláudio apanha um cigarro e acende o isqueiro:
— É esse negócio do Eisenhower. Uma turma do Itamarati vai a Brasília e eu estou no meio. Vou também e, amanhã, bem cedinho, estarei voando.
Numa tristeza atônita, balbucia:
— De avião?
— Quadrimotor.
Cruza os braços, varada de arrepios:
— Tenho medo! Tenho medo!
Atira fora o cigarro. Recosta-se e, de perfil para ela, fa­la, com um mínimo de voz:
— Já voei não sei quantas vezes. Mas olha: estou com medo, um certo medo. Não sei, mas estou sentindo uma espé­cie de... Ou é porque te achei? Escuta, olha pra mim: sabe que eu gosto de ti?
Agarra-o, desesperada:
— Você fala como se fosse a última vez! Estou achando você meio triste. Querido! Não vai acontecer nada!
Luís passa a mão por trás de sua cabeça e a agarra pelos cabelos:
— Quem sabe?
Instintivamente, ela procura uma madeira para bater as três pancadinhas:
— Olha! Não vai acontecer nada! — muda, bruscamente de tom! — Mas se você... Luís! Se por acaso você tem al­gum pressentimento. Escuta, deixa eu falar: se você acha que, então não vá, meu amor, não vá!
O rapaz fixa o olhar duro. Ela passa os dedos pelo seu rosto:
— Adia a viagem! Diz que está doente! Arranja uma des­culpa! Se você estivesse doente, você não ia, ia?
Novamente, Luís Cláudio a puxa para si:
— Tenho que ir. Preciso ir. Dei a minha palavra. Afinal de contas, avião é o que há de mais normal. Criança de peito viaja de avião. Mas, em todo o caso, há uma possibilidade em mil e... Escuta. Já que há essa possibilidade, que é irrisória, mas existe: eu queria te fazer um carinho.
— Carinho?
Encosta a boca no seu ouvido:
— Aquele.
Recua:
— Mas aqui? Aqui, não, meu bem!
Trinca os dentes:
— Aqui!
E ela, com um olhar de febre:
— Se passar alguém! Pode passar alguém! Outro dia! Sim? Outro dia! Eu te juro que... Aqui, não pode! E está claro! Olha o sol, filhinho, olha o sol!
— Aqui! No Les Amants os dois estavam no barco! En­traram, não sei por quê! Não precisavam entrar! Ouve, meu amor: o automóvel é o barco! O nosso barco! Eu posso mor­rer e...
Abandona-se, ofegante:
— Gosto tanto que... Tenho medo de gritar! Querido, tenho medo de gritar!

*

Amado Ribeiro deixa o Phocion e volta. Puxa o Dr. Odo­rico:
— Meritíssimo, chega aqui um instantinho!
Afastam-se do bolo da reportagem. Amado cochicha:
— Abre o olho, doutor, abre o olho!
Essa intimidade agressiva deu-lhe uma certa irritação. Não gostava do repórter (mas tinha-lhe medo). Sentia, no Amado Ribeiro, um descaro gigantesco. Curva-se inquieto:
— Por quê?
Amado pigarreia e cospe no chão da delegacia:
— Aquilo que eu lhe contei é batata, percebeu? O Miécimo chutou a barriga da preta por dois motivos: porque era pre­ta e porque estava grávida!
O juiz reage:
— Ninguém faz isso, oh Amado!
O repórter ri, numa certeza triunfal:
— Ou o senhor ignora que o policial batata gosta de chu­tar barriga de mulher grávida? É um traço, entendeu? Uma característica vocacional! Aquele que não tem essa tendência é um inepto, um relapso!
Dr. Odorico teve a suspeita de uma blague cruel! Embora delicadamente, protestou:
— O amigo está fazendo uma caricatura. A nossa Polícia é das melhores! Há autoridades dignas! Humanas!
Neste momento, o delegado Miécimo olha, de sua mesa, o juiz e o repórter. Deduz, na sua fúria contida: “Estão falan­do de mim!” E pensa: “O Piragibe tem razão. Dois sujeitos que precisavam levar um tiro na cara! O Amado Ribeiro e o Mário Morel!”

*

Quando o juiz olha o relógio, toma um susto: tarde! Vira-se para o Amado Ribeiro:
— Escuta, Amado, olha: toma conta do menino que eu tenho que ir. E, depois, já sabe: você apanha o Leleco e leva lá naquele bar. Onde a mãe está esperando.
De fato, D. Araci ficara numa sorveteria próxima. O re­pórter bate nas costas do juiz: “Eu garanto a zona. Pode dei­xar”. Antes de sair, Dr. Odorico fez um aceno de dedos para Miécimo. O delegado ergue-se e aperta as duas mãos num cum­primento de pugilista. Na primeira esquina, o magistrado em­barca num táxi.
Vinte minutos depois, salta na esquina de Sete de Setem­bro. Alguém, que vinha passando, retrocede para saudá-lo:
— Meritíssimo!
Vira-se. Era o Nelsinho Sena Neto, rapaz grandalhão, de uma larga e agressiva simpatia humana. Sua vitalidade depri­mida humilhava os conhecidos. Sufocou o juiz no seu abraço voraz. Meio triturado, Dr. Odorico geme:
— Nelsinho, olha! Preciso muito falar contigo!
Ao vê-lo, tivera um desses lampejos fatais e decide, impul­sivamente: “Vai ser o meu orientador sexual!” O Nelsinho es­tava, porém, com pressa e explica:
— Tenho uma pequena me esperando, mas olha: vamos fazer o seguinte... À meia-noite, hoje, no Sorriento! Ceia co­migo! Está convidado! No Sorriento. OK? Tchau, que...
Partiu, levando a sua fúria vital. E, então, satisfeito do encontro (uma coincidência), o juiz pôde ir ao encontro do Tinhorão, que já esperava na porta do Jornal do Brasil, debaixo do relógio. O jornalista arremessou-se:
— Arranjei! Está arranjado!
Dr. Odorico parece espantado. Tinhorão explica, em voz alta, chamando a atenção:
— O apartamento! Arranjei o apartamento!
O juiz recua:
— Já?
Vibra:
— Um apartamento que só falta falar! Ambiente meio danunziano. Tem uns biombos pretos, com uns arabescos dou­rados. Negócio meio fúnebre, mas de alta sensualidade! Qui­nhentas pratas!
Maravilhado, Dr. Odorico já imaginava Engraçadinha atrás do biombo, tirando a roupa. Num gesto enfático, Tinhorão ar­ranca algo do bolso:
— Toma!
Era a chave. Dr. Odorico recua como se aquilo fosse uma arma carregada. Esbugalha-se: “Chave?” Tinhorão exulta:
— Por minha conta, eu combinei tudo. Disse que o Meri­tíssimo ia, lá, amanhã, às quatro horas. Das quatro às seis!
O juiz está lívido. Quase soluçou:
— Você fez isso, ó Tinhorão! Pelo amor de Deus! Escuta Tinhorão! Não me faça uma coisa dessas! Olha aqui: essa pes­soa, deixa eu falar. Essa pessoa, por quem eu sinto uma forte atração, é uma senhora, escuta, Tinhorão! Uma senhora hones­tíssima! Honestíssima! Nunca pensou, jamais, nem por sombra, em prevaricar! É casada! Casada, percebeu?
O espantado agora era o jornalista.
— O senhor ainda não cantou?
Ao ouvir falar em cantar, Dr. Odorico quase disse um pa­lavrão:
— Rapaz, olha essa linguagem! De mais a mais, a senhora é protestante! Ninguém canta uma protestante! Escuta, Tinho­rão. Naturalmente que essa dama... O que há é o seguinte: eu fiz algumas despesas. Uma vez que ela admitiu essas despesas, há um certo compromisso. Há. Mas é uma coisa muito velada e que exige certo tato. Honestíssima, senhora honestíssima! Te­mos que dar tempo ao tempo!
Cruelmente divertido, o Tinhorão dá-lhe a notícia, à quei­ma-roupa:
— Mas é que eu adiantei as quinhentas pratas que o se­nhor vai me reembolsar.

*

Em pé, junto à cama, Silene mergulha o rosto no lenço encharcado de éter. Ao mesmo tempo, Letícia passa o lança-per­fume na nuca, no ouvido, nas costas, entre os seios da menina. Silene sente-se um ser maravilhosamente gelado. Súbito, a garo­ta rola em convulsões sobre a cama; Abre a boca, mas a outra cai, sobre ela, tapa-lhe o grito. Letícia soluça:
— Minha! Minha!

Nenhum comentário: