domingo, 13 de dezembro de 2009

CAPÍTULO CII

Disse, num sopro:
— Não ouvi.
Mentira. Ouvira, sim. Mas não queria acreditar que o Tinhorão tivesse a audácia, o atrevimento de... O rapaz repete, com uma cínica crueldade:
— Perfeitamente, o senhor me deve quinhentas pratas!
Na sua fúria sarcástica, o juiz pergunta:
— Devo então pagar uma dívida que eu não fiz?
Doce e inapelável, Tinhorão sorria:
— Quinhentas pratas, Meritíssimo!
Dr. Odorico estrebucha. Agarra-o pelo braço:
— Escuta, Tinhorão! Você se precipitou. Tinhorão eu ape­nas perguntei se você conhecia um apartamento. Mas olha: quem deve marcar o dia e a hora dos meus pecados sou eu mes­mo!
O jornalista interrompe:
— Um momento. Dr. Odorico, agora não há mais remé­dio. E eu estou duro, Dr. Odorico. Estou na maior pinda, en­tende? Na maior pinda de todos os tempos!
Indignado, o juiz avança dois passos, retrocede outro tanto. Aquele era um dos mais amargos dissabores de sua vida. Esta­va tão afrontado que fez, inclusive, confissões imprudentes:
— Já não sou criança. Tenho idade. Não sou um mocinho como você que está em plena forma. Só eu sei o dia e a hora das minhas excitações e dos desejos. Você há de ser velho um dia.
Súbito, Dr. Odorico percebe que estava fazendo, ali, de graça, uma autoflagelação. Enfureceu-se ainda mais. Encara o jornalista. Jamais a pupila do rapaz fora tão doce e tão cândi­da. O juiz pragueja, interiormente: “Deflorador! Irresponsável”! Súbito, tem uma inspiração:
— E a dona desse apartamento? Quinhentos cruzeiros por uma hora!
— Duas.
Retifica:
— Ou duas. Ponho essa miserável na cadeia!
Tinhorão recua.
— Mas é uma flor! Uma cambaxirra!
Fez um amargo escândalo:
— Você chama uma caftina de flor, de cambaxirra? Não! Tem paciência! Essa, não! Discordo!
Tinhorão acha uma graça imensa:
— Não exageremos! Doutor, a caftina administra. Apenas administra. De mais a mais, não é caftina, nem aqui, nem na Conchinchina. Tem um apartamento, aluga o apartamento.
E o juiz, na réplica triunfante:
— A casais! Aluga a casais! É um comércio infame. Po­nho na cadeia! Ela que se faça de tola, que eu ponho na cadeia. Ou devolve o dinheiro... Toma, Tinhorão, toma os teus qui­nhentos cruzeiros.
Entrega a cédula que o Tinhorão embolsa. Dr. Odorico respira forte (a úlcera dá palpitações furiosas). Baixa a voz:
— Amanhã, vou lá. Dá o endereço. Vou lá e... Esse di­nheiro tem que ser devolvido, ah, tem!
Vão caminhando e o Tinhorão, já reembolsado, começa:
— Calma, Doutor! O senhor vai gostar da Árvore de Na­tal, compreendeu?
Dr. Odorico estaca: Árvore de Natal? O outro teve de ex­plicar:
— A Árvore de Natal é a dona do apartamento.
Mas o juiz continuava sem entender o nome. Soube, en­tão, que a chamavam assim porque era uma figura feérica de jóias. Havia, nela, mil cintilações de brincos, colares, pingen­tes, argolas, anéis, pulseiras, o diabo. E mesmo seus vestidos, a partir das horas da manhã, tinham um frenético assanhamento de lantejoulas.

*

Um automóvel vinha, ao longe. Engraçadinha baixa a ca­beça!
— Vem gente!
Deixam passar o carro. E ela, dilacerada, suspira:
— Não te disse? Aqui, não! Vamos embora!
Pergunta:
— Queres ir ao meu apartamento?
Estremece:
— E a hora?
— Mas escuta! A gente passa, olha, Janet, olha! Passa lá uns quarenta minutos, no máximo. Quarenta minutos e depois te levo. Ainda é cedo. Te, levo em casa, te deixo perto de casa.
— Só quarenta minutos?
— Juro.
Vacila. Disse, por fim:
— Olha. Vou, porque você vai viajar e eu tenho muito medo de avião. Mas já sabe: não posso me demorar. Ouviu? Tem que ser rápido...
Arranca, de novo. E, então, numa tristeza que a embeleza­va, Engraçadinha fez a pergunta:
— Escuta: você acha que, em certos momentos. Você me entende? Eu falo demais? Ou é assim mesmo?
Vira-se:
— Não entendi.
Ela não sabe como explicar. E, ao mesmo tempo, sente uma brusca vergonha. Sorri, no seu enleio:
— Meu bem, é que... Eu tenho uns vinte anos de casa­da. Eu me casei menina e...
Enquanto Luís Cláudio guia, Engraçadinha recosta a ca­beça no seu ombro. Contínua. Disse que, noite após noite, ela se deixava possuir em silêncio, muda, tão muda! Na hora do amor conjugal, jamais o marido ouvira uma palavra sua. E, ago­ra, no carro, suspira:
— Eu não falava porque não tinha nada o que dizer.
Pausa. Mais adiante, quando atravessavam o Túnel do Pas­mado, Engraçadinha sopra no seu ouvido:
— Eu aceitava o meu marido. Aceitava. Mas te juro. Ju­ro pela vida dos meus filhos, está ouvindo? Juro que eu fui, sempre, a esposa mais fria do mundo. Eu te disse que meu ma­rido nunca me viu nua. Disse? Mas com você...
Pergunta:
— Gosta de mim?
E ela:
— Com você é diferente. Com você, eu sinto vontade de falar. Preciso falar. Acho que se eu não falasse... Você enten­de? As outras são assim?
Guiando com uma só mão, Luís Cláudio passa o braço em torno de Engraçadinha:
— Escuta, Janet.
Diz:
— Não sou Janet.
E ele:
— Como?
Vira o rosto para o seu amado:
— Eu sou Engraçadinha.
Repetiu como se saboreasse aquele nome:
— Engraçadinha.
Agarrou-se ao rapaz:
— Te disse a verdade, porque. Olha. Não quero ser Ja­net, quero ser eu mesma. Quero que você ame Engraçadinha, e não Janet.
Luís Cláudio repete:
— Engraçadinha.
Ela fala no seu ouvido:
— Escuta, mas não olha pra mim que eu tenho vergonha. Até este momento, você é quem faz carinho. Eu recebo. Só re­cebo.
Ri:
— Você já mordeu o meu peito. Sabe que sangrou?
— Coitadinho! Mas escuta! Hoje, como você vai viajar, eu também quero fazer um carinho e... Eu te prometo que não vou ter mais vergonha.

*

Mergulhou no delírio. Conheceu misteriosas volúpias gela­das. Ouvia o próprio riso. “Sou eu que estou rindo”. O riso es­tilhaçado. E, depois, sua nudez multiplicada nos espelhos.
Desperta. Letícia inclina-se sobre o seu rosto:
— Silene. Está me vendo? Sou eu, Silene.
Senta-se na cama. Olham-se. Silene põe uma mão em cada seio.
— Minha roupa.
Letícia passa-lhe a blusa. Silene, de costas para ela, faz a pergunta:
— O que é que você fez comigo?
Suspira:
— Nada.
Repete:
— O que é que você fez comigo?
Aproxima-se, lentamente (dá-lhe a calcinha):
— Quer saber, quer?
A pequena perde a cabeça:
— Bem que a mamãe disse. Mamãe tinha me avisado. Eu não pensei, mas...
Rápida, Letícia a segura pelo pulso:
— Tua mãe disse o quê? O que é que tua mãe avisou? Nem tua mãe, ouviu? Nem ninguém! Eu duvido!
Súbito, cai de joelhos. Abraçada às pernas de Silene, so­luçava:
— Se você fugir de mim, eu te mato, ou me mato! Oh, Silene!
CAPÍTULO CIII
Quando o juiz viu o carro do Tinhorão, teve uma dúvida honesta, quase indignada. Recua meio metro e aponta:
— Esse carro! esse carro!
O outro parece lamber com a vista a lata velha!
— Que tal?
O juiz não queria acreditar. De olho aceso, anda circularmente. Coça a cabeça, pasmo:
— Vem cá, Tinhorão! Já não estou entendendo mais na­da. Você acha que isso agüenta até Vaz Lobo? Agüenta, Ti­nhorão?
E o outro, com a sua clara pupila:
— Que piada é essa, Meritíssimo? Duvida? Já fui com esse carro a Teresópolis!
Olhando os pneus, a decadência da carroceria, a ferrugem fatal, o juiz não se contém:
— Outra coisa. Você me desculpe, mas é uma curiosida­de. Você me diz que seu rendez-vous é o carro. Mas escuta: as pequenas não estranham esse rendez-vous?
Riu, numa vaidade feliz:
— Mas se elas gostam! Preferem!
Dr. Odorico faz a volta e ocupa o assento, ao lado do cho­fer. Geme, realmente escandalizado com o interior do veículo:
— A gente vive aprendendo!
Numa graça meio triste, exagera, para si mesmo: “Aqui dentro deve ter até ratazana!” Na direção, o jornalista torce a chave. Houve, ali, um solavanco alarmante que ameaçou o car­ro de desintegração. Mas, enfim, partiram. E, então, o juiz quis mudar de assunto. O episódio do apartamento ainda o entalava. Subitamente começou:
— Tinhorão, sabe que eu não agüento mais a humildade do Sobral Pinto?
O rapaz chegou a tomar um susto:
— Sobral o quê?
E o juiz limpando um pigarrinho:
— Pinto, Sobral Pinto. Grande homem, não há dúvida.
— O Sobral?
— Exato: o Sobral. Grande homem, mas tudo tem um limite. Menos as cartas do Sobral. Já reparou que as cartas do Sobral são ilimitadas? São. Um simples post scriptum do Sobral é do tamanho de ...E o Vento Levou.
O motor do carro começou a pipocar. O juiz, porém, ven­deu seu peixe até o fim:
— O que eu queria dizer era o seguinte: o Sobral tem a humildade mais ululante do Brasil. Mais ululante e mais agres­siva. Tudo o que acontece, já sabe. Vem o Sobral e esfrega a humildade na cara da Nação.
Tinhorão insinua:
— Boa figura.
E o juiz:
— De acordo. Ótima. Mas que diabo! Eu acho que o So­bral...
Pára um pouco e elabora uma nova imagem:
— Sabe o que faz o Sobral? Empunha a humildade como um estandarte e só falta fazer evoluções de rancho.

*

Avisa à Engraçadinha:
— Uma esquina antes do meu edifício, eu paro e você salta.
E ela:
— Salto. Vou sozinha?
— Convém, meu anjo. É bom. Você deve entrar e sair sozinha.
Chega-se para o rapaz:
— Querido, não te esqueças. Sou Engraçadinha e não Janet. Olha: me chama de Engraçadinha — respira fundo e com­pleta, recostando a cabeça no seu ombro: — Senão eu tenho ciúmes dessa Janet.
Entram na rua onde ele morava. Uma esquina antes do edifício, Luís Cláudio encosta: “Décimo-segundo andar, aparta­mento 1202.” Baixa a voz:
— Deus te abençoe.
Engraçadinha fez o caminho lentamente. Repetia, no medo pueril de um lapso: “Décimo-segundo andar, apartamento 1202.” Desde que entrara no carro experimentava a sensação constante de que a luz a atravessava. Quando passa pelo hall do edifício, dizia para si mesmo, um pouco atônita: “Eu não tenho direito de ser tão feliz.”
Durante vinte anos deixara-se possuir sem dizer jamais uma palavra. Veio, no elevador, com dois sujeitos. Um deles enche a voz:
— O Guimarães Rosa é pura excitação verbal. O sujeito é ouvinte do seu texto, e não leitor. Mas a partir da trigésima página sentimos um irremediável tédio auditivo. Grande Sertão
Veredas torna-se numa audição para surdos.
Os dois desconhecidos iam para o último andar, que era o décimo-quarto. Engraçadinha saltou no décimo-segundo. A por­ta do 1202 estava entreaberta. Corre e empurra. Luís Cláudio abre os braços:
— Minha carícia!
No elevador, o mesmo indivíduo insiste:
— Guimarães Rosa pode ser um gênio. Mas é a maior monotonia verbal de todos os tempos. Dirá das duas uma: ou o sujeito aceita o Guimarães Rosa e repudia os outros; ou pre­fere os outros e chuta o Guimarães Rosa.
Em pé, junto à porta, cicia:
— Posso te fazer uma pergunta?
— Faz.
Ela, com uma vergonha muito doce:
— Tenho um corpo bonito?
Apanha entre as mãos o rosto de Engraçadinha:
— Duvida?
— Responde.
Traz Engraçadinha pela mão:
— Senta aqui no meu colo. Escuta: há anos, ouviu? Há anos que eu não vejo um seio bonito.
Recua a cabeça:
— Mentira!
Ele a beija, de leve, no pescoço:
— Juro e olha. Tão difícil, no mundo inteiro, um seio bonito. E o teu é lindo! Não sei como pode existir, não sei. Uma coisinha tão linda. Te digo mais. Escuta, escuta: sabe que teu seio é tão bonito que até perturba um pouco o meu desejo?
Abraça-se a ele:
— Nunca ninguém me falou assim! É a primeira vez e... Juro que é a primeira vez...
Curva-se:
— Janet!
Desprende-se, atônita. Recua diante dele:
— Não sou Janet!
Levanta-se:
— Engraçadinha!
Ela se lança nos seus braços:
— Perdoa, meu amor! Há tanto tempo que eu não ama­va! Há tanto tempo que eu não tinha ciúmes!
Estão abraçados:
— Engraçadinha, olha!
E ela, passando os dedos no seu rosto como uma cega encantada:
— Deixa eu falar! Escuta, eu te disse que...
— Vem!
— Um momentinho! Eu te disse que ia te fazer um ca­rinho... Um carinho que eu nunca fiz e que eu condeno nos outros. Um carinho que...
— Faz.
Esconde o rosto:
— Mas tenho medo.
— De quê?
— Vergonha!
Dá-lhe bruscamente um beijo na orelha e pergunta:
— Se eu fizer esse carinho, você não vai pensar que... Te juro que não fiz com ninguém nunca... E que...
Puxou-a:
— Engraçadinha, olha para mim, olha! Entre homem e mulher, vira o rosto para mim! Entre homem e mulher não há perversão possível. Agora, vem! Não há perversão...
Subitamente, carregou-a no colo. Ela chora:
— Diz que meu seio é bonito. Diz, querido, ah querido!
Sentia-se perdida para sempre. Nem sentiu quando Luís Cláudio ligou o rádio de cabeceira e abriu o volume. Ele a chamava ora de Janet, ora de Engraçadinha. Quando a beijou no ventre ela pensou que a mulher não devia sobreviver a certas carícias. Súbito, Crispa a mão no braço de Luís Cláudio. Faz o apelo:
— Agora, deixa eu ir um pouquinho por cima, deixa!

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