segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

CAPÍTULO CIII

Quando o juiz viu o carro do Tinhorão, teve uma dúvida honesta, quase indignada. Recua meio metro e aponta:
— Esse carro! esse carro!
O outro parece lamber com a vista a lata velha!
— Que tal?
O juiz não queria acreditar. De olho aceso, anda circularmente. Coça a cabeça, pasmo:
— Vem cá, Tinhorão! Já não estou entendendo mais na­da. Você acha que isso agüenta até Vaz Lobo? Agüenta, Ti­nhorão?
E o outro, com a sua clara pupila:
— Que piada é essa, Meritíssimo? Duvida? Já fui com esse carro a Teresópolis!
Olhando os pneus, a decadência da carroceria, a ferrugem fatal, o juiz não se contém:
— Outra coisa. Você me desculpe, mas é uma curiosida­de. Você me diz que seu rendez-vous é o carro. Mas escuta: as pequenas não estranham esse rendez-vous?
Riu, numa vaidade feliz:
— Mas se elas gostam! Preferem!
Dr. Odorico faz a volta e ocupa o assento, ao lado do cho­fer. Geme, realmente escandalizado com o interior do veículo:
— A gente vive aprendendo!
Numa graça meio triste, exagera, para si mesmo: “Aqui dentro deve ter até ratazana!” Na direção, o jornalista torce a chave. Houve, ali, um solavanco alarmante que ameaçou o car­ro de desintegração. Mas, enfim, partiram. E, então, o juiz quis mudar de assunto. O episódio do apartamento ainda o entalava. Subitamente começou:
— Tinhorão, sabe que eu não agüento mais a humildade do Sobral Pinto?
O rapaz chegou a tomar um susto:
— Sobral o quê?
E o juiz limpando um pigarrinho:
— Pinto, Sobral Pinto. Grande homem, não há dúvida.
— O Sobral?
— Exato: o Sobral. Grande homem, mas tudo tem um limite. Menos as cartas do Sobral. Já reparou que as cartas do Sobral são ilimitadas? São. Um simples post scriptum do Sobral é do tamanho de ...E o Vento Levou.
O motor do carro começou a pipocar. O juiz, porém, ven­deu seu peixe até o fim:
— O que eu queria dizer era o seguinte: o Sobral tem a humildade mais ululante do Brasil. Mais ululante e mais agres­siva. Tudo o que acontece, já sabe. Vem o Sobral e esfrega a humildade na cara da Nação.
Tinhorão insinua:
— Boa figura.
E o juiz:
— De acordo. Ótima. Mas que diabo! Eu acho que o So­bral...
Pára um pouco e elabora uma nova imagem:
— Sabe o que faz o Sobral? Empunha a humildade como um estandarte e só falta fazer evoluções de rancho.

*

Avisa à Engraçadinha:
— Uma esquina antes do meu edifício, eu paro e você salta.
E ela:
— Salto. Vou sozinha?
— Convém, meu anjo. É bom. Você deve entrar e sair sozinha.
Chega-se para o rapaz:
— Querido, não te esqueças. Sou Engraçadinha e não Janet. Olha: me chama de Engraçadinha — respira fundo e com­pleta, recostando a cabeça no seu ombro: — Senão eu tenho ciúmes dessa Janet.
Entram na rua onde ele morava. Uma esquina antes do edifício, Luís Cláudio encosta: “Décimo-segundo andar, aparta­mento 1202.” Baixa a voz:
— Deus te abençoe.
Engraçadinha fez o caminho lentamente. Repetia, no medo pueril de um lapso: “Décimo-segundo andar, apartamento 1202.” Desde que entrara no carro experimentava a sensação constante de que a luz a atravessava. Quando passa pelo hall do edifício, dizia para si mesmo, um pouco atônita: “Eu não tenho direito de ser tão feliz.”
Durante vinte anos deixara-se possuir sem dizer jamais uma palavra. Veio, no elevador, com dois sujeitos. Um deles enche a voz:
— O Guimarães Rosa é pura excitação verbal. O sujeito é ouvinte do seu texto, e não leitor. Mas a partir da trigésima página sentimos um irremediável tédio auditivo. Grande Sertão
Veredas torna-se numa audição para surdos.
Os dois desconhecidos iam para o último andar, que era o décimo-quarto. Engraçadinha saltou no décimo-segundo. A por­ta do 1202 estava entreaberta. Corre e empurra. Luís Cláudio abre os braços:
— Minha carícia!
No elevador, o mesmo indivíduo insiste:
— Guimarães Rosa pode ser um gênio. Mas é a maior monotonia verbal de todos os tempos. Dirá das duas uma: ou o sujeito aceita o Guimarães Rosa e repudia os outros; ou pre­fere os outros e chuta o Guimarães Rosa.
Em pé, junto à porta, cicia:
— Posso te fazer uma pergunta?
— Faz.
Ela, com uma vergonha muito doce:
— Tenho um corpo bonito?
Apanha entre as mãos o rosto de Engraçadinha:
— Duvida?
— Responde.
Traz Engraçadinha pela mão:
— Senta aqui no meu colo. Escuta: há anos, ouviu? Há anos que eu não vejo um seio bonito.
Recua a cabeça:
— Mentira!
Ele a beija, de leve, no pescoço:
— Juro e olha. Tão difícil, no mundo inteiro, um seio bonito. E o teu é lindo! Não sei como pode existir, não sei. Uma coisinha tão linda. Te digo mais. Escuta, escuta: sabe que teu seio é tão bonito que até perturba um pouco o meu desejo?
Abraça-se a ele:
— Nunca ninguém me falou assim! É a primeira vez e... Juro que é a primeira vez...
Curva-se:
— Janet!
Desprende-se, atônita. Recua diante dele:
— Não sou Janet!
Levanta-se:
— Engraçadinha!
Ela se lança nos seus braços:
— Perdoa, meu amor! Há tanto tempo que eu não ama­va! Há tanto tempo que eu não tinha ciúmes!
Estão abraçados:
— Engraçadinha, olha!
E ela, passando os dedos no seu rosto como uma cega encantada:
— Deixa eu falar! Escuta, eu te disse que...
— Vem!
— Um momentinho! Eu te disse que ia te fazer um ca­rinho... Um carinho que eu nunca fiz e que eu condeno nos outros. Um carinho que...
— Faz.
Esconde o rosto:
— Mas tenho medo.
— De quê?
— Vergonha!
Dá-lhe bruscamente um beijo na orelha e pergunta:
— Se eu fizer esse carinho, você não vai pensar que... Te juro que não fiz com ninguém nunca... E que...
Puxou-a:
— Engraçadinha, olha para mim, olha! Entre homem e mulher, vira o rosto para mim! Entre homem e mulher não há perversão possível. Agora, vem! Não há perversão...
Subitamente, carregou-a no colo. Ela chora:
— Diz que meu seio é bonito. Diz, querido, ah querido!
Sentia-se perdida para sempre. Nem sentiu quando Luís Cláudio ligou o rádio de cabeceira e abriu o volume. Ele a chamava ora de Janet, ora de Engraçadinha. Quando a beijou no ventre ela pensou que a mulher não devia sobreviver a certas carícias. Súbito, Crispa a mão no braço de Luís Cláudio. Faz o apelo:
— Agora, deixa eu ir um pouquinho por cima, deixa!

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