terça-feira, 15 de dezembro de 2009

CAPÍTULO CIV

Diante do espelho, Engraçadinha retocava a pintura dos lábios. Pouco atrás, Luís Cláudio faz o nó da gravata.
Com o batom suspenso, pergunta:
— Gostou?
Olhava-o pelo espelho. Luís Cláudio aproxima-se. Incli­na-se para beijá-la na orelha:
— Estou apavorado!
Vira-se:
— Por quê?
E ele:
— Acho que vou me apaixonar.
Guarda o batom:
— Eu já estou apaixonada.
Ergue-se. O rapaz põe as duas mãos nos seus quadris:
— Você é corajosa?
Desvia o olhar:
— Covarde.
Quis beijá-lo, mas lembra-se que iria marcá-lo de batom. Passa a mão na sombra áspera e quente de sua barba:
— Querido! Até hoje, eu não sei como tive coragem de vir até aqui. Eu juro. Olha pra mim: juro que nunca. Tenho vinte anos de casada e nunca, ouviu? Nunca traí meu marido. Eu não tive um amante, juro! Você acredita? Responde: acre­dita? Eu não tive um amante. Você é o primeiro.
Disse:
— Eu sei, eu sei!
E ela, depois de olhá-lo, com brusco desespero:
— Você diz que sim, mas não acredita. Escuta: e outra coisa. Você me achou, responde a verdade!, você me achou muito experiente, experiente demais? Achou?
Ria:
— Você, meu bem...
— Eu não tenho experiência nenhuma. Nenhuma. Fiz coisas que... É porque era você... Nem meu marido, ouviu? Luís, olha: eu sempre fui ignorante em amor. Eu não sabia nada. Nem tive amantes, nunca!
— Bobinha.
Então, segurando-a pelos dois braços, fê-la calar-se:
— Agora sou eu que falo. Escuta: eu te perguntei se és corajosa. És?
— Depende.
Calca o cigarro no fundo do cinzeiro:
— Vamos fugir?
Repete, espantada:
— Fugir?
Fez Engraçadinha sentar-se no seu colo, novamente. Ela cruza os braços, num súbito frio. Aquilo estava na cabeça: “Fugir.” Luís Cláudio baixa a voz.
— Fugir, sim. Fugir simplesmente. É tão simples fugir!
Para ele a fuga era de uma simplicidade terrível. Repetia: “Deixar tudo e fugir.” Engraçadinha sente um arrepio violento que se irradia por todo o seu ser. Tem um espanto:
— Mas eu sou casada!
— Deixa eu falar.
E ela:
— Tenho filhos!
Ergue a voz:
— Olha! Sei que, hoje, os amantes não fogem. Ninguém foge. Mas olha: sabe para onde a gente podia fugir?
Levantou-se:
— Luís, ouve, Luís! Eu tenho um filho homem. Se ele souber que... Deixa eu falar, Luís. Se ele souber que eu te­nho um amante. Deus me livre e guarde, mas se souber, sabe o que ele faz? Ele me mata ou te mata e, depois, se suicida. Já te contei que Durval tem ciúmes de mim como um namo­rado? Tem!
Trouxe Engraçadinha para seu colo:
— Podíamos ir para Brasília.
— Brasília?
E ele:
— Presta atenção. Não chora, Engraçadinha. Está cho­rando por quê? Lá, eu tenho amigos. Escuta. Enxuga as lá­grimas. Toma o meu lenço e enxuga.
Assoa-se no lenço de Luís Cláudio:
— Fala.
Ele toma as suas mãos:
— Clóvis Peixoto, esse meu amigo, que é uma flor, ele podia ajudar. Quando eu estive lá, no mês passado, ele arran­jou um jipe e... Largo o Itamarati, largo tudo. Você vem comigo. Arranjo um emprego braçal. Ouviste? Braçal!
Há um silêncio. Olham-se. Luís Cláudio começa a sofrer:
— Você não pode ser de dois. Você compreende? Com­preende, Engraçadinha? Escuta! Você acha que pode ser de dois? Não pode ter um marido e um amante.

*

Letícia a segura pelo braço:
— Você almoça comigo.
— Nunca!
— Deixa de ser boba. Almoça e olha.
Desprende-se:
— Letícia, eu conto à mamãe que...
Baixa a voz, numa sôfrega humildade:
— Silene, faça o que você quiser. Mas isso não impede que... Almoçamos e eu te conto umas coisas. Há coisas que você precisa saber. Leleco vai precisar de dinheiro. Não vai?
A menina vacila. Letícia insiste:
— Sim?
Suspira:
— Almoço, mas é a última vez!
— Vem, anda, vem.
Almoçaram no próprio hotel. Com um mínimo de voz, Letícia não pára de falar:
— Vocês não vivem. Isso não é vida. Fala! Isso é vida? Meninas bonitas que têm tudo para viver e não vivem. Mo­ram numa casa que francamente... Você com apresentação, bem vestida, já imaginou?
Silene apanha uma azeitona com um palito:
— Papai ganha muito pouco!
Inclina-se, vivamente:
— Mas claro! Quer dizer que... Você vai se estragar por quê? Olha, Silene. Eu tenho uma idéia. Uma porção de idéias. Você quer ser rica? Quer ser rica? Rica de verdade?
Ergue o olhar:
— Rica?
Umedece o lábio com a língua. A outra continua:
— Você casa com Leleco. Gosta dele? Casa com ele, pronto. E aí nós três...
Balbuciou:
— Nós três?
Disse, com certo desespero:
— Sim, nós três. Você quer ser rica? Leleco não tem onde cair morto. Nós três, por que. não? Escuta, criatura, ra­ciocina! Vocês morariam comigo porque não têm dinheiro. Ou não é? Tudo que é meu. Eu sou rica, muito rica. Tudo que é meu passará a ser teu. Queres?
Custa a responder:
— Depende.
A outra disse a última palavra:
— Eu não tocarei na sua vida. Você poderá ter marido, está ouvindo? Escuta o resto.
Lentamente, sem desfitá-la, com um olhar duro, com­pletou:
— Poderá ter marido e poderá ter amantes.

*

Até a cidade, viajaram em silêncio. Só ao passarem pelo monumento aos pracinhas é que, subitamente, Engraçadinha fez a reflexão em voz alta:
— E se me virem contigo de automóvel?
Respondeu, com outra pergunta:
— Vamos fugir?
— E meu marido? Meus filhos? Não amo meu marido, mas tenho pena. Se você soubesse a pena que eu tenho de meu marido. E nem quero que meu filho... Meu filho se mataria.
Vira-se para Engraçadinha, com surdo sofrimento:
— E eu? Você fala dos seus filhos. E eu? Pensa em todos e não pensa em mim. Eu só penso em ti. Escuta, Engraça­dinha: eu disse que ia me apaixonar. Menti. Já estou apaixo­nado.
Dobraram a Rua México. Por um momento, Engraça­dinha encostou a cabeça no seu ombro:
— Te amo.
De perfil para ela, sonha:
— Não sei se você vai ou não. Mas, amanhã, quando eu chegar em Brasília, vou tratar de arranjar um lugar para nós dois. E se você não for, eu estarei, lá, te esperando, sem­pre...

*

Quando Engraçadinha chegou em casa, encontrou Leleco, Amado Ribeiro, o Dr. Odorico e Silene. Letícia chegou pouco depois. Entra, faz um cumprimento geral e chama Engraçadinha. Vão para o quarto. Engraçadinha está impaciente: “Que é?” Disse, simplesmente:
— Te vi, ainda agora, com teu amante.
Disse, num sopro de voz.

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