quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

CAPÍTULO CV

— Não ouvi.
E a outra, muito doce:
— Te vi com teu amante. Eu. Você com seu amante. Ainda não ouviu? Engraçadinha, eu vi você com o seu amante.
Rosto a rosto, desafia:
— Sua mentirosa!
E Letícia, com uma falsa doçura:
— Negas?
— Nego!
Segurou-a pelo braço:
— Olha para mim. Assim. Responde: queres que te diga onde e como?
Puxa o braço:
— Escuta, Letícia! Eu conheço você. Você gosta de mu­lher, Letícia! Gosta e...
Pára, desesperada. Letícia ergue o rosto:
— Vi, escuta, Engraçadinha. Vi você com um homem no carro.
Tem medo:
— Era um amigo.
— Que mais?
Improvisou, febrilmente:
— Um amigo que... O Zózimo conhece. Um amigo.
Tiritava diante de Letícia. Repetia, fora de si: “Um ami­go.” E diria, outras vezes, numa fixação que a enfurecia: “Amigo, amigo.” E pensava: “Letícia não acredita numa palavra do que eu estou dizendo!” Ainda assim, continuou:
— Eu estava esperando a condução. Ele passou, me viu. Deu carona.
Parecia mentir para si mesma. E quando finalmente Engraçadinha saturou-se da própria imaginação, Letícia trinca os dentes:
— Posso falar? Então, escuta. Não era amigo.
— Amigo.
E a outra:
— Amante. Tão amante, escuta, Engraçadinha! Tão amante que, na cara de todo o mundo, você recostava a cabeça. Recostava a cabeça no ombro desse rapaz. Ou minto? Diz na minha cara: é mentira?
Aterrada, Engraçadinha lembrava-se de que, por um mo­mento, colara o corpo ao dele e... O automóvel passava pela Loja do Artigo do Dia, embaixo do jornal luminoso. O tráfego entrava, ali, num espasmo medonho. Cinco horas da tarde. E Engraçadinha não entendia o impudor do próprio abandono.
Violenta, mas em voz baixa, a outra dizia:
— Eu procurava um táxi e vi. Ninguém me contou, eu vi! Engraçadinha com um amante! Bonito rapaz, lindo! Agora, Engraçadinha, escuta. Fala pra mim: é mentira?
Perdeu a cabeça:
— Letícia, olha! A única pessoa no mundo que não pode falar de mim... Não pode falar de ninguém. É você. Eu não admito que você...
Pergunta, melíflua:
— Tens ou não tens um amante?
Falava apaixonadamente, mas sem elevar a voz:
— Letícia, eu sei onde você quer chegar. Sei. Eu vi como você olhou para minha filha. Mas se você, olhe o que eu estou avisando. Se você tiver a audácia, o atrevimento, eu...
Agarrou-a com violência:
— Você fará o quê?
Começa a chorar:
— Eu mato...
A outra exaltou-se também (controlando a voz para não ser ouvida):
— Cala a boca! Cala a boca ou... Você quer que eu vá lá fora, agora mesmo, e diga a seu filho, à própria Silene, diga ao juiz, que você, hoje...
Nesse momento, batem na porta:
— Mamãe, quer vir aqui, um instantinho?
Era Durval. Engraçadinha faz um esforço sobre si mesma. Sorri, entre lágrimas, como se o filho a pudesse ver:
— Já vou, meu filho.
As duas olham-se, em silêncio. Antes de sair e passando a mão nas lágrimas, Engraçadinha diz, sem violência e quase doce:
— Ai de você, Letícia, ai de você se tocar num cabelo de minha filha. Se minha filha há de se prostituir que seja com um homem e não com...

*

Assim que Engraçadinha abandona a sala com Letícia, Silene vira-se para o juiz:
— Quer me dar uma palavrinha, Dr. Odorico?
Tinhorão chegara, ali, e logo tomara conta do ambiente. Nascera com o dom das intimidades instantâneas. Na casa de Engraçadinha, foi, desde o primeiro momento, um íntimo de tudo, das pessoas, dos móveis e até do São Jorge. Ao ver Silene arremessou-se:
— E a nossa capa do Cruzeiro? Precisamos tirar as foto­grafias! Ainda hoje, o Acioli me perguntou: “Como é? Você traz ou não traz a menina?” Precisamos ir lá!
Atônita, Silene balbucia:
— Não sei se posso e...
Quando chega Engraçadinha, Tinhorão sopra para o juiz, num radiante escândalo: “A mãe é melhor do que a filha!” Dr. Odorico empertigou-se, pessoalmente tocado. Fez um esgar de nojo como se o jornalista fosse um fauno e tivesse pés e cheiro de bode. Reage: “Contenha-se, Tinhorão, contenha-se!” Mas o rapaz era inexpugnável aos apelos dessa natureza. E insistia, ao ouvido do juiz:
— A mãe também dava uma boa capa pra o Cruzeiro!
Esse desejo indiscriminado irritou, de vez, Dr. Odorico. Virou-lhe as costas e foi-se colocar na outra extremidade da sala. Foi então que, na ausência de Engraçadinha e Letícia, Silene trouxe o juiz para a cozinha:
— Escuta, Dr. Odorico, eu menti.
O outro balbucia:
— Mentiu?
Não estava entendendo nada. Inclina-se para a menina (está surpreso e descontente). Silene fala depressa:
— Não foi Tinhorão. Eu disse que foi, mas... foi Leleco. Entende? Foi Leleco.
Era demais para a credulidade do juiz. Dando voltinhas, em torno da garota, e sem altear a voz, lamentou-se abundan­temente:
— Eu, um juiz! Uma menina de 12 anos. 14, não é 14? Uma menina de 14 anos. E faz de mim gato e sapato. De 14 anos!
Não disse, mas pensou: “Hoje em dia, uma menina de 11 anos é mais corrupta do que um Nero!” Ele próprio teve cons­ciência do exagero amargo. Encara Silene:
— Em que é que ficamos? E se não for também o Leleco? Se foi outro? Aqui, entre nós, que ninguém nos ouve: eu pre­feria que fosse o Tinhorão. Pelo menos, justiça se lhe faça: ele não matou ninguém. Pode ter outros defeitos, mas não é assas­sino.
Na varandinha, Leleco pergunta ao Amado Ribeiro:
— Você acha que...
O repórter disse tudo:
— Olha, rapaz! Você quer saber a verdade? No duro, no duro? A verdade batata? Você está num mato sem cachorro. Pelo seguinte: se você matasse uma mulher. Escuta, escuta! Se fosse um caso de amor normal... Mas você foi mexer com quê? Meu chapa, no Brasil a pederastia é uma potência. A besta do Phocion tem razão!
— Mas eu não podia...
Calou-se, porque Durval aparecia. O rapaz teria admitido a presença do Amado, do Tinhorão, de qualquer outro. Mas contraiu-se ao ver o juiz. Ao mesmo tempo, o Dr. Odorico pensa: “Esse menino me odeia!” Durval dardejara-lhe, de pas­sagem, um olhar de extrema malignidade. Lívido, o rapaz vai chamar Engraçadinha. E quando as duas aparecem, Amado Ribeiro lança a idéia:
— O advogado deve ser o Phocion.
Dr. Odorico faz espanto: “O Jacarandá Branco?” Amado Ribeiro tem um riso largo e insolente:
— Mas Dr. Odorico! Qualquer advogado é um jacarandá. Ministro, juiz, desembargador, tudo é jacarandá. Ou não é?
O juiz rosna. O repórter não lhe dá atenção:
— Vamos ao que interessa. O advogado é quase tão voraz como o psicanalista e o anestesista. O Phocion quer dinheiro. Há dinheiro?
Silêncio. Embora uma coisa não tivesse a menor relação com a outra, o juiz ratifica para si mesmo: “Não pago ao Medina um tostão da geladeira.” Decide também: “Amanhã, vou arrancar os quinhentos cruzeiros da ‘Árvore de Natal’.” Letícia, que estava sentada, ergue-se. Disse, sóbria e incisiva:
— Há dinheiro. Eu me responsabilizo por todas as des­pesas.

*

Durval está com Engraçadinha, na pequenina área:
— Mamãe, eu avisei. Eu disse à senhora, não disse? Disse.
— Escuta, Durval! Deixa de ser criança!
E ele:
— Hoje, eu rebento esse juiz!

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