domingo, 20 de dezembro de 2009

CAPÍTULO CIX

Não dormiu um único segundo. Ao lado, de barriga para cima, camisa rubro-negra (sem mangas), Zózimo tinha um sono total, de menino, de anjo. “Não sofre”, deduz Engraçadinha. De ponta a ponta da vigília, ela repetiu para si mesma: “Letícia deve morrer.” E já a via, deitada, as mãos unidas, o diáfano perfil das mortas, os cabelos gelados.
Levantou-se mais cedo. Abriu um pouco a janela e viu sumir, no alto, a última estrela da noite. Ao mesmo tempo, pen­sou em Luís Cláudio. Sentiu-se, então, no limite do sonho. Pouco depois, deixava o quarto. Quando Zózimo levantou-se, Engraçadinha estava fazendo o café. Pela primeira vez, ela achava um certo encanto nas pequenas ocupações da manhã.
Na sua camisa rubro-negra, ele escovava os dentes, em pé, na porta da cozinha. O dentifrício escorria-lhe como uma baba. Perguntou:
— Tudo azul?
Virou-se, um momento:
— Mais ou menos.
Não podia dizer-lhe: “Tua filha deixou de ser virgem.” Tampouco diria: “Há uma mulher apaixonada por tua filha e por tua esposa.” Nem iria confessar o amante. Com cara de sono, Zózimo ainda fazia espuma com a velha escova. De costas para ele, Engraçadinha começa:
— Zózimo, diz uma coisa — pausa e faz a pergunta: — Eu não tenho sido boa esposa, tenho?
Fez espanto:
— Por quê?
Suspira:
— Tenho a impressão que como esposa, não sei, mas acho que fracassei.
O marido passa a mão na boca. Tem um riso largo:
— Que piada é essa? Escuta, você, que diabo! Eu acho você a melhor esposa do mundo, que é que há? Acho, dou-lhe a minha palavra! Ou você duvida?
Novo suspiro:
— Você é um anjo.
Ela ouvira alguém dizer, certa vez: “Num casal, há sem­pre um infiel. É preciso trair para não ser traído.” Pouco de­pois, Engraçadinha trouxe um cafezinho fresco para o marido. Disse, então, com uma tristeza leve:
— Zózimo, olha aqui. Se algum dia eu fiz alguma coisa que... — completa, vivamente: — Eu queria que você me desculpasse!
E dizia para si mesma: “Talvez seja hoje o dia da minha morte.” Olhava para tudo como se o fizesse pela última vez.

*

Cerca das dez horas, o Nelsinho Sena veio para a cidade. Desceu com o Meireles, de táxi. Este esbravejava:
— O Juscelino dá confiança demais à juventude, corteja a juventude. Mas escuta cá: o que é o jovem? O jovem ou é um Rimbaud ou um débil mental, digno do SAM.
Nelsinho Sena estava pensando no juiz. Deixava o Mei­reles falar e nem prestava atenção à grandiloqüência que via­java a seu lado. Na hora de saltar, o Meireles deu a última tirada:
— O inimigo de Brasília é um cavalo mal-informado: não sabe que está de quatro.
Desce o amigo e Nelsinho parte para o Foro. Justamente, o Dr. Odorico vinha chegando também. Há o abraço na calçada. O juiz arrisca a pergunta inquieta:
— Escuta, aqui, Nelsinho: ontem, eu falei demais, não falei?
Toda a sua timidez estava em efervescência. O outro, com a sua extroversão contundente e avassaladora, disse tudo:
— Dr. Odorico, o senhor não falou demais. O senhor falou como devia falar sempre, entendeu? E sabe por que é que eu estou aqui?
O magistrado olha em torno, agoniado:
— Fala baixo! Fala baixo!
E Nelsinho, baixo, mas taxativo:
— Eu estou aqui, porque, ontem, percebeu? Ontem, o senhor me encheu as medidas. Pela primeira vez, eu fiquei besta consigo.
A úlcera do juiz dava pinotes. Puxa o Nelsinho: “Vamos subir?” No caminho, o outro ia dizendo:
— O senhor contou coisas lapidares! Por exemplo: um detalhe genial, sabe qual foi? Quando o senhor disse que tinha nascido em Mimoso do Sul. Já imaginou o que é o sujeito nascer em Mimoso do Sul?
Dr. Odorico olhava o rapaz, de esguelha, com uma sus­peita de pilhéria cruel. Súbito, Nelsinho o agarra, puxa-o para si, diz-lhe ao ouvido:
— Ah, outra coisa que me conquistou. Quando o senhor contou aquele troço sobre a sua família.
Dr. Odorico recua, num pânico profundo:
— E que foi que eu disse?
Estavam no corredor. Nelsinho atrai o juiz para uma ja­nela:
— O senhor disse que sua mãe não era casada e que...
Dr. Odorico estava lívido. Crispa a mão no braço de Nel­sinho:
— Pelo amor de Deus, Nelsinho, escuta. Eu te peço a maior reserva. Tenho inimigos, concorrentes. E se alguém sabe...
Nelsinho exulta:
— Achei isso lindo! Esse detalhe é um primor, uma per­feição!
Geme:
— E o ridículo?
Embora moderando a voz Nelsinho passou-lhe um pito jucundo e triunfal:
— Esse preconceito contra o ridículo! É um equívoco obtuso e milenar! Pois se o bom, o gostoso, o sublime é o ri­dículo! Aqui entre nós, eu achava o senhor meio borocochô. Mas ontem eu... Nem dormi direito pensando na nossa con­versa. Vim aqui para lhe perguntar: quer conquistar a dama?
Passavam advogados, funcionários, partes. De vez em quando, Dr. Odorico precisava retribuir um cumprimento. Nel­sinho tinha o dom de confundi-lo, desorganizá-lo. Aquele elogio ao ridículo pareceu-lhe suspeito e improcedente. Nelsinho em­pacava no seu ponto de vista: “Só o imbecil não é ridículo!” Queria convencer o Dr. Odorico de que, na véspera, ele fora de um ‘ridículo épico’. Ao saber que ‘a dama’ estava para chegar, esfrega as mãos, numa satisfação gratuita e profunda: faz o seguinte, presta atenção. Fala com a dama tal e qual falou
— Eu tenho a chave da conquista. É simples. O senhor comigo. Entende? Os pontos fundamentais são os seguintes: o local do nascimento: Mimoso é um achado; a mãe eterna­mente solteira, outro detalhe ótimo, e os sopapos que o filho lhe deu. O senhor diz isso, no mesmo tom de ontem, e a dama está no papo.
Novamente, o juiz desconfia de uma sórdida pilhéria. (Con­tinua sem entender mais nada.) Nelsinho, porém, insiste: “Não é com escrúpulos, pudores e dúvidas que se conquista uma mu­lher.” Súbito, o magistrado faz a pergunta pânica:
— E se essa senhora concordar? Eu não tenho o tal re­médio. E vale a pena, assim desprevenido? Você não sabe de um estimulante, de preferência pastilha? — e explicou: Pas­tilha toma-se até sem água. Conhece alguma? Não devo me expor a um contratempo e...
Outra preocupação do juiz era o apartamento. Nelsinho foi taxativo:
— Aqui mesmo. Por que apartamento? Aqui. O senhor vai para a sua sala...
— Tem o escrevente!
Riu:
— Chuta o escrevente. Quando a dama chegar, fecha a porta, entendeu? Fecha a porta e já sabe.
O juiz estava apavorado:
— Em cima dos processos?
— Mas claro! E por que não? Em cima dos processos! Não se incomode com o desrespeito. Chuta o escrevente!
Dr. Odorico arqueja. O fato de ser, como ele próprio dizia, ‘em cima dos processos’, era a um só tempo estimulante e deprimente. Sente a úlcera em brasa. Baixa a voz, num apelo:
— E a pastilha? Se eu tivesse uma pastilha para uma eventualidade, ouviu? Para uma eventualidade!

*

Parou na porta:
— Dá licença?
Ergueu-se. Com as pernas bambas, a úlcera em fogo, pre­cipitou-se:
— Entre. Vamos entrar.
E ela, suspirando:
— Quase não vinha.
Dr. Odorico começava a sofrer. Sem uma pastilha (ou um vidrinho) no bolso, sentia-se um desamparado, um ven­cido. E, subitamente, convencia-se de que o Nelsinho era um louco furioso. Toda a apologia do ridículo era pura e feroz insanidade. Enquanto Engraçadinha sentava-se, ele pensa: “O Nelsinho devia estar amarrado num pé de mesa, e bebendo água numa cuia de queijo Palmira.” Ao mesmo tempo, decide: “É linda demais para mim. Eu sou velho e magro!” Imaginou-se nu e de sapatos, com as suas canelas espectrais. Pensa: “De­sisto e não pago um tostão ao Medina!” A renúncia fez-lhe um bem imenso. E, então, Engraçadinha faz a pergunta:
— O que é que você tinha para me dizer?
Dr. Odorico estava pensando no Medina. Especulava: “Um sujeito que fez o Presépio da Cinelândia é vivo demais para cobrar a um juiz.” E, súbito, acontece o imprevisível. Ele, que achava inexeqüível, acima das suas forças terrenas, fechar a porta, levantou-se e foi fazer esta impossibilidade. E, assim, trancou-se com Engraçadinha. Muito surpreso (e alarmado) da própria coragem, voltou. Imaginou que ela devia ter percebido a sua dispnéia emocional. Todavia, Engraçadinha parecia meio alada e não teve nenhuma reação. Ele senta-se e ouve uma voz longínqua: “Em cima dos processos.” O ato de fechar a porta era, porém, o limite de sua audácia. Há um silêncio. De repente, o juiz levanta-se, aproxima-se e a agarra. Tudo aconteceu numa alucinação. De surpresa, deu-lhe um selvagem beijo na boca.

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