sábado, 19 de dezembro de 2009

CAPÍTULO CVIII

Letícia quer agarrá-la. Fora de si, Engraçadinha despren­de-se:
— Eu não ouvi direito! Não é possível! Escuta, Letícia! Você disse que ou minha filha ou...
Teve no olhar um lampejo frio:
— Disse! Ou você ou sua filha! Uma das duas! E prefiro você! Prefiro...
— Demônio!
Engraçadinha recua. Balbucia ainda: “Está louca!” Sú­bito, Letícia começa a chorar:
— Escuta! Deixa eu falar, Engraçadinha! O que interessa é o amor, o amor que eu sinto. Amor que... Muito maior que o teu! Eu faria tudo por ti, tudo. Mas o que você faria por esse homem? Responde. Olha para mim: você largaria tudo pelo seu amante?
Disse, encostada à parede: “Como?” E a outra, rouca e ofegante:
— Você largaria seu marido, seus filhos, sua casa por um amante? Teu amor é normal. Ele homem e você mulher. Quero saber, responde: Você deixaria tudo pelo seu amante?
Custou a responder:
— Não.
A outra exulta:
— É esse o teu amor normal?
Na sua euforia, aperta o braço de Engraçadinha. Com um riso surdo e feroz, disse o resto. Disse que o amor normal vive de pequeninos, de miseráveis escrúpulos, pudores, egoísmos e limites. Está cara a cara com a prima:
— Pois eu largaria tudo! Ouviste bem: tudo!
Essa violência fazia Engraçadinha crispar-se de medo e de ódio. Foi falando e rindo:
— Queres morrer comigo? Agora, neste minuto? Eu mor­reria contigo, já. Você é normal. Mas olha: uma coisa te digo. Se eu fosse você, teria vergonha...
Chorava. O que queria dizer é que Engraçadinha devia ter vergonha da normalidade e invejar a tara que... Engraçadinha ia dar uma resposta, quando batem, novamente:
— Engraçadinha?
Era Zózimo. Ela passa a mão nas lágrimas:
— Já vou.
Mas o marido, do lado de fora, queria apenas saber se podia tirar o jantar. Responde:
— Tira. Pode ir tirando.
O rosto de Letícia era uma máscara parada, inescrutável. Engraçadinha vira-se para a prima:
— Escuta. Aqui não podemos conversar. Passo no hotel, amanhã.
Disse, com ardente humildade:
— Olha. Não se esqueça do seguinte: eu nunca mais olharia para Silene. Deixa eu falar. Silene seria para mim, está ouvindo?, sagrada. E, além disso, você continuaria a sua vida e... Teria esse ou outros amantes, entende?
Respira fundo:
— Basta, Letícia!

*

Depois que viu o juiz sumir, lá longe, Durval volta para casa. Pouco adiante, encontra Janet, Iara e D. Araci. (Esta chegava de uma nova consulta com o Ceguinho.) Janet tinha sempre a impressão de que o via pela primeira vez. (“Como é lindo!” pensou.) Disse, transida de alegria:
— Vim te ver, já que você não dá bola!
D. Araci despedia-se, sôfrega:
— Escuta, vocês vão me dar licença, que eu vou ver meu filho. Até já. Vem Iara.
O simples fato de olhá-lo fazia-lhe um bem desesperador. Suspira:
— Ah, Durval! Você não toma emenda. Prometeu que telefonava e quedê?
Mentiu: “Serviço, muito serviço.” Caminharam, lentamente, pela calçada; e quando a moça ia falar em Leleco, o rapaz antecipou-se, tumultuosamente:
— Imagina tu. Acabei de dar uns tabefes agora num cara.
Toma um susto: “Brigou?” Enfia as duas mãos nos bolsos:
— Não chegou a ser briga. O cara é um velho. Um velho sem-vergonha. E se meteu a besta, já sabe! Comigo não tem esse negócio. Pode ser velho, mas folgou, rebento!
Janet pára um momento: “Mas velho, Durval?” Não en­tendia que ele, um forte bom, um gigante manso, pudesse agre­dir um sujeito que... Pergunta: “Mas, finalmente, o que foi que ele fez?”
E o rapaz, excitado:
— Olha, Janet. Você me conhece. Eu não brigo. Tenho horror de brigas. Mas não mexam com minha mãe ou com minhas irmãs. Porque eu não respondo por mim. E o velho se meteu a besta com mamãe. Logo com quem?
— Com D. Engraçadinha?
Subitamente, compreendia tudo. Sabia a adoração de Dur­val por Engraçadinha. Com o implacável senso comum femi­nino, quis aconselhá-lo: “Não liga, Durval. Não dá bola!” An­daram mais alguns passos. Durval baixa a voz. Falou como se sonhasse:
— Às vezes, eu penso. No dia em que mamãe morrer. Não sei, escuta: não sei como um filho pode perder a mãe e continuar vivendo. Eu quero morrer antes de mamãe. Ou, então, morrer ao mesmo tempo. Não, não. Quero morrer antes.
A seu lado, Janet pensa: “Eu não existo. Nem as irmãs existem. Só a mãe dele existe.”

*

Sentado no banco da praia (o mar começava a ventar), o juiz insistia:
— Eu não sou nenhum atleta. Um tabefe desse rapaz me mata. Dá uma opinião: o que é que eu faço?
Tinha, ao fazer a pergunta, uma carinha de choro. (Es­tava para chorar a qualquer momento.) Nelsinho foi de uma sucinta ferocidade:
— Dá-lhe um tiro!
Passa a mão na boca: “Tiro?” A despeito da embriaguez, ou semi-embriaguez, teve uma fina malícia: “Não é próprio do Judiciário dar tiros a esmo!” Solta um risinho que logo recolhe. Agarra o braço do Nelsinho. (Precisava chorar o quanto antes. Tinha a impressão de que as lágrimas iam aliviá-lo.) Chora, fi­nalmente: “Nelsinho, um velho, eu sou velho! Tenho 52, não 48, mas 52 anos! E vem um rapaz...” Continua.
— Subi na vida com sacrifício. Sabe onde eu nasci? Em Mimoso do Sul, lá no Espírito Santo. Já ouviu falar em Mi­moso? Não ouviu. Você conhece mal e porcamente o Espírito Santo. Pois bem: eu nasci lá. E outra coisa que eu te conto porque estou bêbedo. Minha família, ouviu? Minha mãe não era casada. Nem conheci meu pai... Deixa pra lá. Não inte­ressa meu pai.
Já o Nelsinho queria arrastar o juiz:
— Vamos pra casa, Meritíssimo!
Dr. Odorico resiste:
— Você acha que eu estou bêbedo? Mas escuta. Sabe por que eu sou juiz? Porque nunca me ofendi. O segredo de tudo é não se ofender. Não se ofenda, Nelsinho, nunca! Só uma vez me ofendi. Pela primeira vez, me ofendi: hoje!
Novamente, Nelsinho quer arrastá-lo:
— Dá o desprezo!
Resiste, ainda, numa teimosia meio bovina:
— Sou um velho e... Um velho, Nelsinho. Todo o dia minha mulher me atira a idade na cara! Mas que é que eu faço, Nelsinho, o que é que eu faço?
Nelsinho atira longe o cigarro:
— Atraca a mãe do rapaz! É a vingança!
O juiz estrebucha:
— Mas é honestíssima! Senhora honestíssima! E eu estou desmoralizado! Apanhei e não reagi. Mulher não gosta de covarde, de derrotado. Além disso, se eu conseguir. Se ela for a um apartamento. Posso ficar nervoso e... Entende?
Nelsinho foi de um otimismo total: “Por que nervoso? O senhor vai naturalmente, como se...” Dr. Odorico protesta:
— Você não sabe. Olha, Nelsinho, você não sabe. E eu bebi pra te contar a minha intimidade sexual. Ultimamente, as minhas necessidades são muito espaçadas. Às vezes, passa um mês, dois, três, sem que... Nem me lembro...
Nelsinho bate-lhe nas costas: “Impressão!” O juiz arqueja:
— Escuta! Eu queria levar comigo um remédio, um vidrinho no bolso. Na hora, se, por acaso, fosse preciso, eu... — e soluçava, atracado ao amigo: — Você sabe de um remédio?
O outro foi vago: “Arranjo. Pode deixar.” Vinha um táxi, que Nelsinho manda parar. Puxa o magistrado. Dr. Odorico, chorando, entra no carro. Foi resmungando, por toda a viagem: “Eu nasci em Mimoso do Sul... E minha mãe era amigada...”

*

Na hora de dormir, quando Engraçadinha entrou no quarto das filhas, Matilde perguntava à Silene:
— Onde você arranjou isso?
Engraçadinha teve tempo de ver a calcinha leve, minúscula, um sonho. Atônita, faz um gesto: “Vem cá.” Leva a menina pela mão. Só na pequenina área é que, no seu desespero, per­gunta:
— Quem te deu isso? Fala! Quem?
A princípio resiste: “Ora, mamãe!” E acrescenta: “Nin­guém!” Engraçadinha contrai a boca: “Diz a verdade! A ver­dade! Ou diz ou...” Começava a odiar essa menina. Ao mes­mo tempo, pensa com um sofrimento intolerável que também fora assim. Naquela idade, rompia, do fundo do seu ser, uma contínua e mortal voluptuosidade. Fora de si, sacode a filha. Silene tem medo; balbucia:
— Foi Letícia!
Engraçadinha disse apenas, com um olhar perdido (pare­cia falar para si mesma):
— Eu vou matar Letícia.

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