quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

CAPÍTULO CVI

Achou que podia dominá-lo, outra vez. Disse, crispando a mão no seu braço forte:
— Durval, você parece que não pensa, que não raciocina!
E ele:
— Mamãe, olha. Na Prolar, o que a senhora fez comigo, mamãe! A senhora pediu e eu...
— Durval!
Continuou, fora de si:
— Naquele dia, eu, como um boboca, nem sei o que me deu, obedeci. Mas hoje, mamãe! Esse velho teve a audácia de... É um sem-vergonha, mamãe? Deu a geladeira porque, e eu...
Olhou o filho com uma curiosidade nova e sofrida. Havia qualquer coisa de pungente e desesperador nessa beleza de homem. “Como se pode ser tão bonito!”, pensava. Agarrou-o pelos dois braços:
— Olha para mim.
Respira fundo:
— Estou olhando!
Súbito, Engraçadinha sente medo. Pela primeira vez, medo do filho e... Houve um silêncio. (Sua vontade era fugir desse olhar.) Começa, ofegante:
— Escuta, Durval. Essa mania de... — pára, desviando a vista. Deixa passar um momento e ergue novamente o olhar: — Você duvida de sua mãe?
Silêncio. Repete:
— Duvida?
— Por quê?
Engraçadinha sente as entranhas geladas. Ele sempre fora um menino nas suas mãos; ela sempre dominara as suas fragilidades. Subitamente, o desconhecia. Deixara de ser o menino incerto, perdido, e seu rosto era uma máscara hirta de ódio. Pergunta:
— Você duvida? Duvida de sua mãe?
Engraçadinha sentia-se no limite do grito. Disse para si mesma: “Se ele não responder, eu vou gritar, meu Deus, eu vou gritar!” O rapaz foi implacável:
— Mamãe, a senhora jura? Eu nunca na minha vida, nunca, mamãe, duvidei da senhora. Achava que qualquer uma podia trair, menos a senhora. Eu achava, mamãe, que a se­nhora...
Com a boca contraída, Engraçadinha pensa: “Será que ele me viu também? Será que todo o Rio de Janeiro me viu com a cabeça recostada?” E já lhe parecia que uma cidade inteira, que todos os olhos de uma cidade estavam na esquina de S. José com Avenida.
Durval continuava, baixo e febril:
— Mamãe, a senhora vai me jurar. A senhora está dife­rente, mamãe. Eu sinto que a senhora está diferente. Preciso da sua palavra. A senhora jura...
Cerra os dentes:
— Juro!
E ele:
— Jura que nunca...
Respondia, desatinada (embora prendendo a voz):
— Juro!
— Jura pela minha vida. Pela minha vida, mamãe! A se­nhora quer me ver morto como não fez, até agora, nada que uma esposa não possa fazer?
A voz lhe fugia:
— Juro!
Teve uma última dúvida:
— A senhora é, como eu penso, a mulher mais decente do mundo?
— Sou!
Ao mesmo tempo, pensava: “Fala, como se soubesse! Mas ele não sabe! Ninguém sabe! Só a Letícia sabe!” Súbito, o rapaz curva-se. Apanha as mãos de Engraçadinha e beija a palma de uma e outra:
— Mamãe, eu cheguei a pensar que... Mas vejo que... Escuta, mamãe: a senhora me deu a maior felicidade de minha vida...
E, então, Engraçadinha baixa a voz:
— Mas o juiz...
Corta:
— Ah, não, mamãe! Esse vai apanhar! Apanha, mamãe, não tem nem castigo!
— Durval, vem cá!
Ele entrou na sala. Fora de si, Engraçadinha corre:
— Durval!
Seu medo era que, ali mesmo, o rapaz agredisse o juiz. Mas Durval atravessou a sala, sem olhar para ninguém. Deixou atrás de si um furioso e geral:
— Boa noite!
Dr. Odorico, que percebeu o rompante, resmunga, para si mesmo: “Animal!” Tomava-se de ódio contra o rapaz. E odiava também o Amado Ribeiro. (Não perdoava ao repórter o ultraje ao Judiciário.)

*

Tudo resolvido. O Dr. Phocion, que o juiz chamava de Jacarandá Branco, ia ser o advogado de Leleco. O Tinhorão ficara ao lado do repórter:
— O que dá, no Brasil, é Jacarandá por toda a parte. A nossa ficção é feita por Jacarandás. Aliás, está certo.
Tinhorão só via uma saída para a ficção do Brasil: apelar para a boçalidade genial, homérica, miguelangesca de todos nós e de cada um de nós. “Ser boçal, mas fidedigno”, parecia-lhe a única solução literária e vital do brasileiro. Repetia: “Sejamos Jacarandás do estilo.”
Ao ver Engraçadinha, Dr. Odorico precipita-se. Baixa a voz: “Há uma novidade e...” Ela numa infelicidade total (e muito pálida) pede: “Chega aqui.” Encaminhou-se para a va­randinha, seguida do juiz. Alguém na sala estava dizendo:
— O Guimarães Rosa quer que todo o mundo faça pirâ­mide e não biscoito. Mas o que é a obra do Guimarães Rosa senão uma pirâmide de confeitaria?
Exausta de sofrer, suspira:
— Queria lhe pedir um favorzinho.
Inclinou-se, felicíssimo:
— Pois não.
Longe de Luís Cláudio, tudo lhe parecia sem sentido. Era como se ela estivesse vivendo uma falsa vida. Começava a odiar os pequenos deveres e as pequenas ocupações. Sorri para o juiz, com sacrifício:
— Queria adiar nossa conversa para amanhã.
Diz, vivamente:
— Mas surgiu um fato novo! Um fato da maior gravi­dade! — e insistia, baixo e cavo: — Um fato que exige provi­dências imediatas!
Foi delicada, mas inflexível:
— Odorico, escuta. Estou sem cabeça para nada. Por favor, sim? Amanhã e olha: eu passo lá, ao meio-dia.
Controlou-se:
— Está bem. Amanhã. Quer dizer que... Mas escuta: sentindo alguma coisa?
Com surda irritação, suspira:
— Nada. Dor de cabeça, mas... Vai, Odorico, vai.
Com um agudo sentimento de frustração, ele caminha na frente. Na sala, faz o convite risonho:
— Vamos, Tinhorão?
Pouco antes, aparecera Guida. E o jornalista instalara-se com a moça, num canto, aos cochichos. Tinhorão contava que um dos seus carros mais recentes mergulhara num galinheiro, aliás o galinheiro de uma única galinha. Guida não entende. O outro teve de explicar: “Deixei o carro no alto de uma la­deira. De repente, ele arranca sozinho, trepa, rola e desaba no tal galinheiro.” Este assassínio da galinha solitária ainda lhe pesava na consciência. Dr. Odorico insiste:
— Vai, Tinhorão?
Respondeu, num cordial descaro: “Fico.” O Amado Ri­beiro contava não sei o que a Silene. Indignado, Dr. Odorico deduz: “Todo o mundo tem o sexo na cabeça!” E até Leleco o irritou: “Cantam a pequena na cara dele!” Finalmente, o juiz despede-se:
— Bem. Até mais ver.
E a sua humilhação foi ainda mais aguda porque Engra­çadinha não o acompanhou até à porta. Assim que o juiz saiu, ela encaminha-se para o quarto. Crispa-se, ao sentir que Letícia vem atrás. No quarto, desespera-se: “Vê se me deixa em paz!” Quis adiar o sacrifício:
— Te falo amanhã. Passo no hotel. Te falo amanhã.
Letícia disse, simplesmente:
— Teu silêncio pelo meu silêncio!
Recua e encosta-se na parede; balbucia: “Mas não é pos­sível! Criatura, você tem coragem de... Sabendo que eu sou a mãe de...” Baixo e violenta, corta:
— Você não ama? Não tem esse homem?
— Mas eu sou mulher e ele é homem! Homem, percebeu? Posso amar um homem! Não posso amar um homem? Não é meu marido, mas é um homem!

*

Durval saíra, desesperado. Entra, um momento, no bar. Pede, rouco de angústia: “Manda uma batida!” Gostou de quei­mar a garganta. Pousa o cálice, paga e vem para a esquina. Uma menina da vizinhança (bonitinha, mas enjoativa) surge no portão para olhá-lo.
Uma meia hora depois, aparece Dr. Odorico. Ia passar quando Durval o segura:
— Vem cá! Chega aqui!
Balbucia:
— Olá.
Durval aperta mais o braço frágil do juiz com a sua mão potente. Dr. Odorico quer resistir: “Mas que é isso?” Durval começa:
— Seu velho indecente! Sujo! Olha aqui, seu cachorro!

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