sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

CAPÍTULO CVII

Quis desprender-se. Mas estava solidamente seguro. Durval trinca os dentes:
— Velho sujo!
E o juiz, estrábico de terror:
— Que é isso, menino?
Na euforia da força e do ódio, o rapaz deu-lhe umas sacudidelas:
— Escuta! Olha, escuta!
Arqueja:
— Eu podia ser seu pai!
Mais um safanão:
— Não fala! Cala a boca!
Sopra, com boca de choro:
— Mas eu não fiz nada!
E o rapaz, abrindo o peito largo e sólido:
— Se você puser outra vez os pés na minha casa...
Vinha, perto, uma senhora, com uma criança pela mão. Era uma conhecida. Durval disfarça. A fulana sorri, de pas­sagem:
— D. Engraçadinha vai bem?
— Navegando.
Segurando o juiz pelos dois braços, Durval continua:
— Se você aparecer. Olha! Se aparecer...
Geme:
— Há um mal-entendido!
Ao mesmo tempo, pensava: “Se ele não me largar, eu choro!” O outro tinha uma cintilação dura no olhar:
— Quando me encontrar baixe os olhos e atravesse a rua! Senão... já sabe!
Teve a sensação de que Durval ia esmigalhar-lhe os ossos dos braços. Disse, rouco:
— Sou um velho!
Caíam-lhe as lágrimas (tão grossas e tão vivas! Que bem lhe fez esse pranto de velho e de fraco!). Súbito, foi arrebatado, suspenso. Era Durval que o arrancava do solo e o mantinha, no alto, pedalando o ar. Pensou que ia ser arremessado contra o muro:
— Se olhar novamente pra minha mãe, eu te mato! Da próxima vez, te mato!
Soluça:
— Pelo amor de Deus!
Pôs o juiz no chão. Enxota-o:
— Cai fora! Cai fora!
Cambaleante, a vista turva, as pernas bambas, atira-se para a frente. Mais algumas sacudidelas e teria se desintegrado como o carro do Tinhorão. Sua vontade era correr, gritando. Levava consigo um medo último e feroz: “E se ele corre atrás de mim?” Estava tão fraco (e tão velho) que precisava caminhar rente à parede, raspando as grades, o muro. Chorava ainda. Mais adian­te, virou-se um momento, para ver se o outro ficara para trás. Viu, a distância, a figura enorme, maciça, do inimigo. Graças a Deus, não o seguia, graças a Deus! E o medo deu-lhe forças para alargar as passadas. Sentia, em si, depois dos safanões, uma dessas velhices súbitas e totais. Naqueles poucos momen­tos, perdera até a noção da própria identidade. Foi só quando se meteu num táxi é que, subitamente, pôde reconstituir um pouco de si mesmo.
Disse ou, por outra, soluçou para o chofer:
— Cidade!
O motorista olha, com suspeita, esse passageiro esbaforido. Dr. Odorico respira fundo. Já não existia a ameaça direta e física. E, por alguns segundos, experimentou a alegria selvagem do homem salvo. Sofrera, porém, um massacre emocional. E teve que apanhar o lenço, às pressas, enfiá-lo na boca, para tapar o choro. Por mais estranho que pareça, só agora, na se­gurança de um táxi, é que se lembrou da condição de juiz. Repetia para convencer-se a si mesmo: “Sou juiz!” A cena não lhe saía da cabeça. Ele próprio sentia na sua pusilanimidade uma certa grandeza, uma certa plenitude. “Eu, um velho, um juiz!” Apanhara uns petelecos, ele que, no bolso, trazia uma carteirinha — carteirinha que lhe dava poderes para requisitar força policial! Mas já lhe parecia que, mesmo para chamar a radiopatrulha, é preciso um pouquinho que seja de base física. Ao passo que ele, fisicamente, ele... Suas pernas eram fininhas, uns bambus, pernas e coxas. As canelas quase transpa­rentes na sua fragilidade; um tórax mínimo de falso tísico. Ad­mitiu para si mesmo: “Ninguém sabe o que é o medo! Só eu!” Que importava a carteirinha no bolso, se o medo o travava — o grande medo?
Fez o resto da viagem numa meditação ardente e vazia. Foi ao passar pela esquina da Rua Sete com Uruguaiana que Dr. Odorico fez a si mesmo a pergunta:
— E agora? Com que cara vou olhar para Engraçadinha?
Depois de levar uns petelecos do filho, como desejar (simplesmente desejar) Engraçadinha?

*

Na casa de Engraçadinha, Tinhorão já contara toda a sua vida para Guida. Ele próprio não sabia o que era real ou fol­clórico na sua biografia. De mais a mais, tinha nojo físico da veracidade. Quase de saída, faz o convite:
— Quer ver um instantinho o meu carro?
(As fixações do Tinhorão ou eram as suas mulheres ou os seus carros.) Ele, que insinuava em tudo uma ironiazinha, falava agora com uma ardente seriedade:
— Meu carro é mil vezes melhor que o Cadillac.
Dizia isso com uma unção que a impressionou. Saíram os dois. E, lá, diante da espectral lata velha, Tinhorão perguntava: “Tenho ou não tenho razão?” Guida ria:
— Estou com a minha cara no chão!
O jornalista não se deu por achado:
Te digo. A lata velha tem a humanidade de uma ca­chorra prenha.
Guida desce do meio-fio. Passa a mão, de leve, no para-lama, numa inconsciente carícia:
— Estou gostando do teu carro!

*

Letícia faz uma boca sardônica:
— Você acha bonito ter amante?
Ergue o rosto:
— Eu não disse que tinha amante! Disse? Não disse! Ou disse?
— Disse! Confessou!
Engraçadinha aperta a cabeça entre as mãos. Já não sabe mais o que pensar, o que dizer. Desafia:
— Pois tenho amante! Tenho. Eu não quis, não procurei. Aconteceu.
— Cínica!
Deixou-se insultar. E, por um momento, esquece a pre­sença de Letícia. Parece falar para si mesma:
— Eu sei que não está certo, que não é direito. Sei. Devia me sentir culpada e queria me sentir culpada. Eu daria tudo pra me sentir culpada. Digo mais: quando eu estou com ele, devia me sentir uma prostituta. Afinal uma mulher casada, com filhos, não tem o direito... Mas ao lado dele, eu me sinto bem, tão bem! Eu me sinto mais decente. É como se o amante fosse o certo e o marido o pecado. Já não entendo mais nada. Estou tão confusa!
Letícia insinua:
— Você acha que seu filho pensaria assim?

*

Ao entrar no Sorriento, quase é meia-noite, Dr. Odorico cruza com Mauritônio Meira. O colunista alarga o riso nordestino:
Dr. Odorico passa, acenando com os dedos. Dado a melancolias, a depressões, invejava o riso contínuo, inestancável, do Mauritônio. “Que sanidade!” era o despeito agudo do ma­gistrado. Dr. Odorico descobre, numa mesa dos fundos, o Nel­sinho Sena Neto, que muitos chamavam de Senador. Era outro que parecia entornar o riso de um cântaro inesgotável. Ao ver o juiz, arremessou-se. Quer arrastar o meritíssimo para a mesa. Dr. Odorico fez pé firme: “Assunto particular!” E, então, o Nelsinho faz um espanto risonho:
— De pileque, Meritíssimo?
Sentira o bafo de álcool. O juiz dá um risinho no ouvido do outro:
— Menino, já viu o Judiciário bêbedo?
Nelsinho pede licença para pagar a despesa. Era um mão-aberta irrecuperável. E, no entanto, ao que se dizia, não tinha de seu, de próprio, um tostão. Seria, digamos, um ‘Rockefeller de tanga’, mas de uma tanga eufórica, suntuária, esbanjadora. (Um gênio para fazer dívidas.) Todavia, esse realizado levava uma única frustração. Ainda não conseguira bater ou sequer igualar o recorde de Jorge Jabour. Este dera, certa vez, uma gorjeta de 150 mil cruzeiros. Não poder imitá-lo era a vergonha do Nelsinho. Depois de pagar a conta com uma abundância de Rei Faruk, o Senador veio apanhar o Dr. Odorico. Deu-lhe o braço e iam saindo. Os garçons faziam rapapés: “Senador! Se­nador!” Lá fora, o juiz tem um novo risinho:
— Primeiro, deixa eu te explicar. Bebi, sim. Hoje, o Ju­diciário está bêbedo. Mas olha: tomei umas cachacinhas com segundas intenções. Pra me confessar a ti.
— Quanta honra!
Atravessam a Avenida. Dr. Odorico vai dizendo: “Só os bêbedos se confessam. Eu, se fosse carola, enchia a cara antes do confessionário. Pra contar tudo na batata.” Não acreditava na sinceridade dos sóbrios, dos lúcidos. E acrescenta, num lam­pejo inesperado: “A confissão católica é, para a alma femi­nina, como um toque ginecológico, sem luva.” Sentam-se num banco da praia, de frente para a Ilha Rasa. O Nelsinho está numa curiosidade total: “Mas qual é o drama?” E o juiz, já com vontade de chorar:
— Hoje, fizeram uma com o Judiciário! Veja você. Um garotão. Sujeito bonito, que devia estar cheio de mulheres e não tem mulher nenhuma. Deu uns petelecos no Judiciário! Uns safanões!
O outro deduz: “Por causa de mulher?” A vontade do juiz é de chorar imediatamente:
— Mulher. Mas olha, Nelsinho, é uma senhora, ouviu? Honestíssima! — e repetia, num repelão: — Honestíssima! O menino é filho dessa pessoa. Mas escuta, Nelsinho! Juro. Você acredita em mim, Nelsinho? Tenho sido de uma discrição! De mais a mais, fiz despesas. Gastei do meu bolso. Do meu bolso, Nelsinho! E, apesar disso, o rapaz, que é um Tarzã, me desfeiteia como se eu fosse um borra-botas! Está prestando aten­ção? Um dos três Poderes, Nelsinho, um dos três Poderes! O que é que eu devo fazer, Nelsinho? Diz. O sujeito é duzentas vezes mais forte do que eu! Devo fazer o quê?

*

Letícia segura o braço de Engraçadinha:
— Você é boa mãe?
— Por quê?
— Gosta de sua filha? Quer salvar sua filha?
Disse, sôfrega: “Quero! Eu te agradeceria de joelhos, Le­tícia!” Silêncio. As duas se olham. Letícia diz: “Depende de ti.” Espanto: “De mim?” E a outra, lentamente:
— Escolhe. Ou sua filha ou você.
Engraçadinha recua:
— Ou eu?

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