quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

CAPÍTULO XCI

Resistiu, esperneou. Deu-lhe, com a mão livre, um tapa na orelha; e, por fim, cravou as unhas na sua nuca. Quis fugir com o rosto, negar-lhe a boca, gritar. Mas ele dominou, brutal­mente, essa fragilidade pânica. Com o beijo violento, Luís Cláudio abria e molhava a boca cerrada.
Ela sentiu que estava prestes a abandonar-se. Lutou ainda. Mas era uma voluptuosa resistência que exasperava o desejo de ambos. Súbito, Engraçadinha teve um selvagem abandono. Dá a boca e, numa frenética agilidade de dedos, abre dois botões na camisa de Luís Cláudio e põe a mão em cima do peito vivo.
E quando se desprenderam, Engraçadinha diz, ofegante:
— Foi a última vez!
Ele a segura pelos dois braços:
— Olha pra mim!
Repete:
— Nunca mais!
Agora Luís Cláudio apanha entre as mãos o seu rosto. Engraçadinha sente que toda a volúpia é triste. O rapaz está dizendo:
— Vou te dar meu telefone.
Interrompe:
— Escuta. Deixa eu falar. Olha, meu amor. Eu te chamo de meu amor porque é a última vez.
— Nós apenas começamos.
Disse, violenta:
— É a última vez! Escuta: eu sou casada, tenho um filho homem, e meu marido não merece.
Enquanto Engraçadinha fala, Luís Cláudio apanha as suas duas mãos e beija uma e outra, com um casto desejo. Ergue o rosto:
— Querida, te dou o meu telefone!
E ela:
— Deixa eu falar. Preciso falar muito. Eu quero dizer uma porção de coisas. Há vinte anos. Mas isso é uma bobagem, que nem interessa. Há vinte anos que eu não sabia o que era prazer. Só agora é que, depois de tanto tempo, só agora e con­tigo! Adorei a chuva. Você não gostou da chuva? Não sei por quê, francamente não sei. Por que é que todo o mundo faz questão de quarto, de cama, de portas fechadas? Foi tão bom, não foi? A gente se amar na chuva?
Pára um momento. Tem a garganta gelada de prazer. Luís Cláudio diz, simplesmente:
— Linda!
Engraçadinha está prestes a chorar:
— Meu amor. Te chamo pela última vez de meu amor. Escuta: não adianta você dar o telefone. Mas escuta: não adianta. Você não vai me ver nunca mais. Sou uma senhora casada. E olha: fiz o que fiz porque era uma última vez. E se houve o que houve, deixa eu falar. Se houve o que houve foi a natureza. É a natureza. Nós mulheres, afinal de contas... mas te juro: meu marido não merece e foi a última vez!
Ele apanha novamente as mãos de Engraçadinha:
— Agora sou eu que falo. Não senhora, sou eu que falo! Vamos fazer o seguinte: você me telefona!
Ergue o rosto duro:
— Juro que... Eu seria a última das mulheres. A última! Se telefonasse pra você!
O outro continua:
— Não faz mal. O meu telefone é esse: 23-5347. Segura.
Apanha o papelzinho. Repete, com uma doçura triste:
— 23-5347.
Sem consciência do que fazia, põe o número na bolsa. Luís Cláudio continua:
— Isso é do Cerimonial. Cerimonial do Itamarati.
Pergunta, vivamente: “Você trabalha lá, é?” Era um de­talhe mínimo, que a encantou. Diz, ainda, numa surpresa ingê­nua: “No Itamarati?” Um clarão torna lunar o interior do carro. E, então, ele vai explicando:
— De uma maneira geral, olha: o Itamarati é um negó­cio meio triste. Mas o Cerimonial ainda é pior.
Para reter Engraçadinha e diverti-la apresentou uma ima­gem talvez distorcida do Cerimonial. Descreveu-lhe uma série de altos funcionários espectrais, uns sujeitos de colete preto, calças de vinco implacável, gravatas geniais. O Cerimonial era um viveiro borbulhante de bobos. E, por fim, Luís Cláudio ri:
— Como eu trabalho lá, começo a desconfiar também que sou um bobo, também sou um cretino.
Luís Cláudio afirma que se o Miguel Ângelo fosse traba­lhar no Cerimonial havia de acabar um débil mental do SAM. Essa violência jucunda a encantou. O rapaz concluía:
— Você liga e manda chamar Luís Cláudio. Luís Cláudio Fróis. Basta Luís Cláudio.
Engraçadinha empertigou-se:
— Já te disse que não telefono. Não é brincadeira. Não telefono e não há hipótese. Quero que Deus me cegue se... Mas escuta: já que não vou te ver nunca mais, eu queria fazer um agrado, o último. Se doer, você avisa. Sim? Deixa?
Ele não fez um gesto, nem disse uma palavra. Engraçadi­nha, com seus dedos leves, desabotoa e abre a camisa de Luís Cláudio. Inclina a cabeça sobre o busto do rapaz e prende nos dentes o bloco do peito forte. A princípio, mordeu de leve; em seguida, com mais força e uma espécie de raiva lasciva. Só parou quando sente o filete de sangue. Ergue o rosto, olha. Antes de sair, mente, ainda: “Aquilo que te disse é verdade. Meu marido nunca me viu nua. Nós fazemos no escuro. De luz apagada.” E, então, sem uma palavra de adeus, ela abre a porta e abandona o carro. Veio caminhando na chuva. Sentia na própria saliva o sangue de Luís Cláudio.

*

Amado Ribeiro empurra Maria Aparecida para dentro do jipe. Com sua experiência brutal de repórter, achava o seguin­te: há momentos em que a mulher, ainda a mais fina. só atende ao tapa. Viajavam os três na frente: Amado, a pequena e o motorista. Ele veio dizendo:
— Olha aqui. Não tem nem ovo. Você vai confirmar.
Intimidada, pergunta:
— Eu digo o quê?
Esbraveja:
— Escuta! O que é que nós combinamos? Não combina­mos? Você parece que come, Maria Aparecida!
Começa:
— Bem. Eu vou dizer que meu marido é o assassino. Mas eu não vi.
Bufa:
— Deixa de ser burra! Não entra nesses detalhes. Cria­tura, fala só o que nós combinamos.
Uma hora depois, saltam na delegacia, debaixo da tem­pestade. A cidade era um pântano total. Amado Ribeiro entra em triunfo, com a esposa do Petruscu. Faz um gesto largo:
— Está aqui a testemunha-bomba!
Miécimo aproxima-se, sem paletó, em suspensórios, o re­vólver pesando no cinto. Respira fundo. (Não se esquece que Moreira César, epilético frustrado até então, veio ter seu pri­meiro ataque nas vésperas de Canudo.) Coça a cabeça:
— Quer dizer que... Vamos sentar. Senta, minha senho­ra. Manda trazer o Petruscu.
A verdade é que Maria Aparecida tem mais medo do repórter que da polícia. Mas quando Petruscu apareceu e viu a mulher, explodiu em soluços:
— Olha as minhas mãos! As minhas mãos!
Maria Aparecida, que estava sentada, ergueu-se, lentamen­te. Perguntou, atônita:
— Te bateram? Você apanhou?
Rolinha agarra o desgraçado e o leva aos empurrões:
— Senta aí! Senta aí e nem mais um pio ou te arrebento! Gringo safado!
Petruscu trinca o choro nos dentes. A mulher é que, fora de si, começa a berrar: “Isso é uma covardia! Isso é...” Rá­pido, Miécimo a segura pelo pulso e torce-lhe o braço. Maria Aparecida aderna. Geme, estrábica de terror. Sentindo que pode ter o seu primeiro ataque epilético, Miécimo estraçalha as pa­lavras:
— Você também, sua! Nem mais uma palavra ou apanha já! Você, seu marido! Apanha todo o mundo!
Balbucia: “Mas eu sou uma senhora!” Ele, com uma fixa­ção de louco no olhar: “Senhora o quê, sua vaca!” A poucos metros, Amado Ribeiro olha apenas, com um tédio meio gaiato. Faz do seu métier uma lúgubre diversão. Nada altera o seu descaro que tem alguma coisa de gigantesco. Marido e mulher estão agora, frente a frente. Miécimo faz uma pergunta e Maria Aparecida começa:
— Eu não vi nada, de forma que... Não vi nada. Não posso afirmar porque não vi e...
Amado Ribeiro interrompe: “Bem, Miécimo. Já vou, com­preendeu? Está na minha hora e já vou.” O delegado vira-se, agressivo: “E não assiste à acareação? Você faz a onda e cai fora?” O outro foi de um cinismo persuasivo, quase doce:
— Escuta, Miécimo. Você é polícia e eu sou repórter. Você não tem nada comigo, nem eu com você. E, além disso, essa mulher aí é uma vigarista. Vigarista. Tchau, e olha: no Brasil é a imprensa que descobre os crimes!
Levanta a gola do paletó e sai na chuva. Mais adiante, apanha o jipe. O cinismo era, nele, uma espécie de euforia, contínua e implacável. Parte para o jornal e já levava a man­chete na cabeça: “LELECO, O VERDADEIRO ASSASSINO!”

*

Chove ainda. Os mesmos trovões, os mesmos relâmpagos. Letícia desejaria que a tempestade não passasse nunca. Silene veste-se. A outra faz um esforço para ser natural (começa a sofrer). Sorri:
— Olha. Vou te dar um presente, ouviu?
Vira-se:
— Para mim?
Letícia senta-se na cama (sua alegria é angústia):
— É. Um presente. Eu vi na vitrina da Sloper. Passei por lá, hoje. E vi na vitrina. Não é a Sloper? É, sim. Fica na esquina da Rua do Ouvidor. É a Sloper. E eu vi, lá, uma calci­nha que é um amor.
Descalça, com todo o frescor da chuva, pergunta:
— De nylon?
E Letícia, feliz:
— Uma gracinha! Só você vendo. Você vai gostar. Tipo biquíni. Olha: toda furadinha. Você quer?
Disse, sentada:
— Ah, quero!
Letícia apanha a mão de Silene e a põe sobre um seio:
— Olha como o meu coração está batendo!

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