quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

CAPÍTULO XCII

Numa amarga perplexidade, Dr. Odorico olhava para o Tinhorão. De uma maneira geral, desconfiava dos extroverti­dos. E o rapaz parecia o menos misterioso dos seres. Ninguém mais transparente. Na pupila cândida e doce, estava toda a sua alma. Por outro lado, a larga e cálida simpatia de Tinhorão dava o que pensar. O juiz aprendera que os simpáticos, via de regra, são irresponsáveis.
Tinhorão repetia:
— O senhor dá o endereço! Eu vou lá!
O juiz já não sabia se esse abandono era espontaneidade ou cálculo. Fosse como fosse, o rapaz prometia ir, o que era uma concessão grave: “Mordeu a isca”, deduz. Tira um ci­garro:
— Essa menina é como se fosse, digamos, minha filha. Entende? Minha filha. Eu me dou com toda a família e...
Não tirava os olhos do rapaz. Queria acreditar que aquela ingenuidade era de uma clara premeditação. Continua:
— E essa pequena — baixa a voz — essa pequena é menor. Tem 14 anos e não parece! Felizmente, para esses casos, a lei é severa!
A insinuação está no ar, viva. Lá fora, um trovão cai em pleno asfalto. O juiz trança os dedos. Já começa a sentir um pouco a dispnéia do medo. Tinhorão enche a boca:
— Considero essa pequena, a Silene. Considero a Silene uma das garotas e digo com sinceridade: uma das garotas mais bonitas do Rio de Janeiro.
Dr. Odorico está espantado: “Esse rapaz não esconde nada! Diz tudo!” De fato, Tinhorão entorna a alma em tudo o que diz, em tudo o que faz. E, então, o juiz dá a última pa­lavra:
— Quer tomar nota? Do endereço? Escreve aí.
O Tinhorão vira-se para o homem do café:
— Ó, meu chapa! Quer arranjar uma caneta? Uma caneta-tinteiro. Tem?
— Lápis?
Estende a mão:
— Serve.
Dr. Odorico dita:
— Rua Vasconcelos. É. Vasconcelos Graça. Tomou nota? Vasconcelos, sim.
Tinhorão devolve o lápis. Feliz da própria habilidade, o juiz baixa a voz:
— Podemos contar, amanhã, com a sua presença? Ama­nhã? Olha aqui, faz o seguinte: aparece depois do jantar. Umas oito horas. Estarei lá e eu o apresento.
Levantam-se os dois. Tinhorão, de pupila ainda mais doce e ainda mais intensa, ri:
— Se quiser, olha: podemos ir juntos. Tenho um automó­vel, um calhambeque. A gente se encontra e vamos juntos.
O juiz recebe, de pé atrás, essa cordialidade abundante. Por um momento, teve vontade de exprobar-lhe tanta simpatia: “Rapaz, você peca por exagero! Não seja tão simpático!” Ao mesmo tempo, pensava: “Esse Tinhorão deve conhecer todos os rendez-vous do Rio de Janeiro. Deve saber de lugares, on­de...” Pensava no apartamento, para onde levaria Engraçadi­nha. Despediu-se do rapaz, que ia acabar o copy desk. E desceu para o terceiro andar. Repetia para si mesmo:
— Ou o Tinhorão casa ou vai pra cadeia!

*

Zózimo era o último a sair do emprego. E já fechava o escritório (era o subcontador), quando desaba o aguaceiro. Vai olhar na janela. Pergunta a si mesmo:
— E agora?
Saíra de casa com um tempo fabuloso: céu sem uma nu­vem, um azul violento, inverossímil. Nem trouxera guarda-chuva. Coça a cabeça: “Tenho que esperar!” E veio sentar-se perto da janela. De vez em quando, um relâmpago inundava de luar todo o escritório. Ele começou a pensar na noite em que, semibêbedo, caíra de joelhos diante de Engraçadinha. Pela primeira vez (em vinte anos) ele vira a esposa nua. Caíra de joelhos, sim. Engraçadinha conhecera, naquela noite, um pra­zer que não desejava e... Súbito, alguém pergunta:
— Dá licença?
Volta-se, espantado: era Maria da Penha. Zózimo ergue-se, tumultuosamente (e ia derrubando a cadeira). Com um começo de angústia, diz: “Você tomou um banho de desapareci­mento!” Mas logo se arrepende do tom íntimo, quase terno. Maria da Penha, de lábios grossos, um olhar de azul diáfano, pintara os cabelos de um ouro ardente. Sua cabeleira dava real­mente uma sensação de fogo. Pergunta:
— Posso me sentar?
E ela mesma puxa a cadeira. Sentou-se, cruzou as pernas e apanhou um cigarro na bolsa. Pede: “Tem fósforo?” Procura instintivamente: “Não tenho.” Mas a garota exclama: “O meu está aqui.” Acende o cigarro:
— Por que é que você desapareceu? Não telefonou mais?
Respira fundo. Começa a escolher as palavras:
— Escuta, Maria: Olha aqui: eu nunca te prometi nada, prometi?
— Não.
E ele:
— Te disse: sou casado. Avisei. Fui leal contigo e...
Desesperada, ela olha em torno. Procura um cinzeiro. Como não tem nenhum por perto, larga o cigarro e o pisa, com raiva. De minuto a minuto, um clarão atravessa os vidros e parece transformar um e outro em misteriosas figuras lunares. Ela não quer chorar:
— Zózimo, eu também não pedi, nem exijo nada. Fala. Eu te pedi alguma coisa? Dinheiro, diz. Te pedi dinheiro? Eu só queria e só quero você. Você, pronto, você!
Sabe que vai magoá-la. Com uma pena irritada, tenta ser bom:
— Maria, eu amo minha mulher. Deixa eu falar, sim? Amo minha mulher. Naquele dia, espera, meu anjo. Naquele dia, eu estava meio alto. Tinha bebido e...
A outra interrompe, com violência:
— Te peço tão pouco! — começa a chorar: — O que é que eu te peço? Quase nada. Não te peço nem amor. O que eu quero de você é que de vez em quando... É feio para mim dizer isso, mas. Quero que, de vez em quando, você passe lá no apartamento. Mesmo sem amor, não importa.
Zózimo ergue-se. Anda de um lado para outro. “Foi o toró que me prendeu aqui!” Vem sentar-se novamente:
— Olha, Maria da Penha. Presta atenção. Escuta. Havia entre mim e minha mulher uma certa situação. Um mal-enten­dido, ouviu? Mas naquela noite, em que eu estive contigo e depois fui para casa, aconteceu uma coisa que mudou tudo. Agora, eu tenho a impressão que, desta vez, parece que eu e minha mulher...
Maria da Penha grita:
— Ela não gosta de ti! Você pensa que ela gosta de ti, como eu, pensa? Deixa de ser burro! Você só me procura bêbedo! Mas eu gosto de ti como ninguém. Gosto tanto que vim aqui me humilhar. Escuta, Zózimo! Não tem ninguém. Fecha tudo e aqui mesmo! Aqui!
— Não!
Chora:
— Querido, dá a tua mão um momento. Dá.
Apanha a mão de Zózimo e, rápida, a põe dentro do de­cote:
— Você disse, não disse? Que o meu seio era bonito? Deixa a mão. Um pouquinho só. Você não disse que, hoje em dia, era raro um seio bonito?
Ele tira a mão, com violência. Maria da Penha ergue-se. Agarra-se a ele:
— Aqui mesmo, Zózimo. Fecha a porta.
Desprende-se:
— Eu não faço isso com a minha mulher!
A outra tem um riso áspero:
— Escuta, Zózimo! Naquele dia, ouviu? Você me contou que...
Agarrou-a pelos pulsos:
— Não fala de minha mulher!
Liberta-se, em desespero. Recua para o fundo do escritó­rio. Ele corre para fechar a porta. E Maria da Penha, encostada à parede, num despeito ordinário:
— Você me disse que sua mulher traía antes do casamen­to! Nega, se tem coragem! Traía com o tal Sílvio! Você me disse, Zózimo! Disse!
Cego de ódio, voltou da porta. Perseguiu-a dentro do es­critório. Com frenética agilidade, Maria da Penha pulava as cadeiras, as mesas. Esganiçava aos berros:
— Quem traiu uma vez, trai sempre!
Por fim, alcançou-a. Deu a primeira bofetada. Ela caiu por cima das cadeiras, de pernas abertas. Levanta-se e corre. Foi derrubada outra vez. Zózimo está por cima; suas mãos se fecham sobre o pescoço da mulher.

*

Quando Engraçadinha apareceu e viu Letícia parou na porta, estupefata. Silene corre:
— Vai tirar a roupa, mamãe!
Engraçadinha não se mexe!
— Você?
E a outra:
— Vai mudar a roupa, Engraçadinha! Vem!
Fora de si, Engraçadinha passa. Está ensopada. Letícia e Silene a acompanham. No quarto, Engraçadinha vira-se para Silene:
— Sai, minha filha, sai!
Leleco voltou a ler o jornal. No quarto, Engraçadinha encara Letícia:
— Você está pensando que vai me ver nua?
A outra recua:
— Mas que é isso?
E ela:
— Se há uma pessoa que não pode me ver nua, nunca!, é você! Saia!

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