sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

CAPÍTULO XCIII

Apertava o pescoço de Maria da Penha. A cara de asfixia tomou as bochechas hediondas e a língua cínica de uma más­cara carnavalesca. Zózimo pensa: “Está morrendo! Estou ma­tando!” Teve medo, asco das próprias mãos. Abre os dedos. Estupefato, levanta-se. Em pé, com as mãos retorcidas, não tira os olhos da menina. Deitada, o vestido no meio das coxas, um filete de saliva, um olhar de agonia, ela respira forte. Ele tem a praga interior: “A chuva que me prendeu!” Foi até a janela, olhar pelo vidro o temporal. Só então, gemendo, Maria da Penha senta-se no chão. Passa na boca as costas da mão. Sem se virar — espiando a enchente na rua — Zózimo fala:
— Levanta!
Está de costas. Lembra-se de Engraçadinha em pé e ele de joelhos. Ao mesmo tempo, imagina que Maria da Penha já se levantou. Ouve a sua voz:
— Zózimo.
Continua de costas. Ela aproxima-se. Fala (ofegante):
— Já vou.
Silêncio. Embaixo, na rua, moleques, de umbigo de fora, passam na enchente. Maria da Penha fala (baixo e sôfrega) atrás do seu ombro:
— Escuta, Zózimo.
Disse, sempre de costas:
— Vai.
Ela continua:
— Eu sei que você voltará.
— Nunca.
Teima, sem excitação, com uma certeza a um tempo doce e fanática:
— Você voltará, Zózimo, voltará, eu sei — e repetiu, quase sem voz: — Voltará bêbedo. Olha, Zózimo, você quando bebe...
— Não!
E ela:
— Quando bebe, você aprende o caminho lá de casa. Bêbedo, você é meu. Já vou e...
Vira-se, bruscamente:
— Eu jurei. Espera. Ouve o resto — e trincava os den­tes. Eu jurei à minha mulher, jurei, Maria da Penha, que não beberia nunca mais, ouviu? Nunca mais. Jurei e... Olha, Maria da Penha: houve entre mim e minha mulher...
Cala-se. Não podia dizer-lhe: “Eu a vi nua. Jamais uma mulher ficou tão nua para um homem.” Maria da Penha ia sair:
— Eu te espero. Todas as noites, estarei em casa. Espe­rando você. Telefona antes. E, se não quiseres, não telefona. Vai sem telefonar. Adeus.
Novamente, de costas, junto à janela, Zózimo nem a viu sair.

*

Letícia recuou:
— Mas que é isso? É assim que você me recebe?
Disse, violenta:
— Letícia, olha! Eu saí de Vitória, sabe por quê? Quis fugir de tudo! Não escrevi para ninguém, escrevi? Escrevi pra você? Todos vocês morreram pra mim!
Quis segurar o braço da prima:
— Eu me casei, Engraçadinha!
A outra foge com o corpo:
— Deixa eu continuar. Aquilo que houve entre nós duas...
Desesperada, interrompe:
— Não houve nada!
Falavam baixo e apaixonadamente. Engraçadinha está enxugando o cabelo encharcado:
— Não houve nada porque eu... Ora, Letícia! Eu é que... Não foi? Eu não quis e... Quer sair, quer? Para eu me vestir?
Letícia começa a chorar:
— Quer dizer que você pensou, claro! Pensou que eu queria ver você despida?
Engraçadinha passa o pano na nuca. Já tirou os sapatos e senta-se numa extremidade da cama. Diz, enquanto enxuga as pernas e os pés:
— Sai um momento! Sai, Letícia!
Letícia encaminha-se para a porta. Põe a mão no trinco e vira-se, um instante, para dizer:
— Preciso muito conversar contigo. E quero que você se convença de uma coisa: eu sou outra. Compreendeu? Outra, Engraçadinha!
Letícia abandona o quarto. Quando entra na sala, Leleco está com a mão crispada na coxa de Silene.

*

A rigor, Dr. Odorico não teria mais nada que fazer na redação. Conseguira que o Tinhorão mordesse a isca. Se ele fosse a Vaz Lobo, estaria comprometido e caracterizada a sua responsabilidade. “Fui hábil! Fui hábil!” era o que o juiz admi­tia para si mesmo. Podia sair. Mas recrudescia, nele, o pavor da tempestade. Um trovão, ainda que longínquo e desgarrado, fazia-o sentir-se um bicho. Despediu-se do Tinhorão e continua­va, lá, errante por entre as mesas. Houve um momento em que Wilson Figueiredo passou e o viu. Retrocede:
— Ainda está aí, Meritíssimo?
Responde, numa infelicidade total:
— É a chuva! É a chuva!
O Wilson teve um gesto largo:
— Escuta! Vem cá! O Hermano Alves deixou, esqueceu o guarda-chuva! Eu empresto o guarda-chuva do Hermano!
O juiz recuou, num pânico quase imoral:
— Obrigado! Eu espero! Eu espero!
Decidiu, de si para si: “Não saio daqui nem a tiro!” En­quanto existisse um relâmpago, um trovão, permaneceria, ali, inarredável. Explica, esfregando as mãos, com o olho rútilo:
— Não há pressa! Não há pressa!
E para que o Wilson não percebesse o pavor, começou a falar, abundantemente. O assunto mais à mão era Brasília; ao mesmo tempo, ocorreu-lhe o nome de Corção, o Gustavo Corção. Misturou Corção e Brasília:
— Você tem lido o Corção sobre Brasília? Leia, Wilson! Vale a pena! Digo-lhe mais!
Acompanhou o Wilson até a mesa de trabalho e ia fa­lando:
— Dizem que o Corção é inteligente. Esse negócio de inteligência é meio relativo. Um sujeito inteligente jamais seria contra Brasília. O Corção finge inteligência!
Wilson senta-se. E o juiz usa o Corção para distrair-se da própria pusilanimidade cósmica:
— De mais a mais, o Corção tem uma acidez de alma que... Ele arrota no leitor. Eu não gosto de usar essa palavra, mas o artigo do Corção é um arroto.
Novo estouro lá fora. Dr. Odorico continua agarrado ao Corção para esquecer a tempestade:
— Outra coisa, Wilson. Hoje, o Corção é contra Brasí­lia. No princípio do século, seria contra a vacina e a favor da varíola! Contra o Osvaldo Cruz e pela febre amarela!
Violentíssimo clarão. A úlcera como que solta faíscas. Ele faz a pausa do medo. Toma respiração e continua:
— Um espírito que é contra Brasília, que nega Brasília... O Corção incompatibilizou-se com a época... Eu não conheço o Corção, a não ser de nome e de acidez. Mas posso jurar — e baixa a voz, na sua malícia cochichada: — posso jurar que o Corção ainda usa urinol!
Neste momento, aparece o Tinhorão e faz um risonho escândalo:
— Ainda não foi, Meritíssimo?
Balbucia, na vergonha do próprio medo:
— É o tempo! O tempo!
Tinhorão foi de uma simpatia empolgante:
— Quer uma carona? Eu dou uma carona! Vamos! Levo o senhor no meu calhambeque! Mora onde? Eu levo!
Dr. Odorico ergue-se, numa gratidão feroz:
— Aceito! Muito obrigado, aceito! Meu caro Wilson, o meu abraço! Sempre seu!
À sombra do Tinhorão, o juiz desceu as escadas, numa violenta felicidade.

*

Amado Ribeiro sai da Polícia e pula no jipe. Abre a camisa. O carrinho chispa, aos trancos, furando a ventania. Ele berra:
— Vaz Lobo!
Põe a cabeça para fora do carro, para receber água na cara. Uns quarenta minutos depois, salta na casa de Leleco. Bate. Ninguém. Pergunta no vizinho. Soube que a mãe do rapaz devia estar na casa de D. Engraçadinha. Pouco depois, apare­cia lá. Viu luz e foi entrando. Aparece na porta da sala e viu, junto à geladeira, apanhando água gelada, o criminoso. Engra­çadinha ergue-se e pergunta:
— Deseja alguma coisa?
E ele, limpando os sapatos no tapete de arame:
— Minha senhora, eu queria falar, ali, com o Leleco.
— Tenha a bondade.
Amado Ribeiro entra. De relance, já percebeu que aquela era uma família de mulheres lindas. Lívido, Leleco vem ao en­contro do repórter. Silene não se mexe. Sente a ameaça. Engra­çadinha puxa uma cadeira:
— Mas sente-se.
Amado obedece. Pensa de Engraçadinha: “Mas que boa! Eu pegava isso e...” Matilde e Guida saem do quarto e esta­cam diante do desconhecido. Iara vem da vizinha. Amado co­meçou :
— Escuta, Leleco. Olha aqui.
Fazia questão que todos, ali, escutassem. Falou claro e alto:
— Amanhã, no meu jornal, eu vou dizer que o assassino é você.
Engraçadinha vira-se, atônita: “Assassino?” Ninguém, na família, entendia nada. Surpreso e descontente, o repórter foi implacável:
— Ou a senhora não sabe que Leleco matou o Cadelão?

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