sábado, 5 de dezembro de 2009

CAPÍTULO XCIV

Engraçadinha arremessou-se, como se fosse agredir Ama­do Ribeiro:
— Leleco, assassino? O senhor está maluco?
Ele perdeu a paciência:
— Escuta, minha senhora!
Guida puxava Engraçadinha:
— Calma, mamãe, calma!
E ela, com a voz nítida e vibrante:
— Bem se vê que o senhor não conhece o Leleco! Se o senhor conhecesse! Escuta, senhor, como é seu nome?
— Amado. Amado Ribeiro.
Engraçadinha vira-se para um, para outro e, até para Letícia, que via Leleco pela primeira vez. Na sua angústia, pedia o testemunho de todos:
— Senhor Amado Ribeiro, o senhor quer ver uma coisa? Olha! O Leleco é como se fosse o meu filho. O senhor pode perguntar aqui.
Amado passa o lenço no pescoço, na nuca. Precisava vol­tar para o jornal e fazer a reportagem. Estava perdendo tempo e... Quis interromper:
— Minha senhora, olha aqui!
Ela teve um repelão:
— O senhor pergunta. Pode perguntar. Vocês acham que o Leleco é capaz de matar...
O repórter ergueu-se:
— Um momento! Deixa eu falar, minha senhora, deixa eu falar? Escuta. Eu estou querendo ajudar esse menino. Mi­nha senhora, um momento! Estou querendo ajudar, mas se a senhora insiste, lavo as minhas mãos e...
Gritou:
— Leleco não é assassino!
Novamente, Guida a segurou pelo braço. Soprou: “Ma­mãe, calma!” Então, Amado Ribeiro falou alto também:
— Das duas uma. Ou a família confia em mim. Confia em mim e faz o que eu mando. Então, não adianta. Se não confia em mim, não adianta.
Guida baixa a voz:
— Seu Amado, mamãe está exaltada! O senhor não re­para, sim?
Silene deslizara, parara junto de Leleco. Crispava a mão no seu braço. O rapaz sentia uma dor atravessando o pescoço. Amado vira-se para Engraçadinha:
— Minha senhora, vou ter que dar a notícia porque é meu dever. Não posso ser ‘furado’. Oh, minha senhora! Escuta. A senhora quer ver como foi o Leleco? Quer? Vem cá, Leleco, chega aqui!
Silene quer barrar a passagem do namorado. Pedia:
— Não confessa nada!
Muito pálido, a boca contraída, o rapaz afasta Silene. Está diante de Amado. Novamente, o repórter passa o lenço no pescoço. Olha para a geladeira e inclina-se para Guida: “Quer me arranjar um copo d’água gelada, por favor? Um copo d’água?” Enquanto a moça abre a geladeira, ele puxa Leleco:
— Você matou, não matou Cadelão?
Era o Amado quem perguntava. Mas foi para Engraçadi­nha que Leleco respondeu, com um olhar de louco:
— Matei, D. Engraçadinha, matei!
Atônita, recua ligeiramente. Repetiu: “Matou?” Amado Ribeiro tirava um cigarro:
— Viu, minha senhora? Matou!
Silene mergulha o rosto nas duas mãos e chora forte, chora alto. Letícia vem, por trás, e pousa a mão na sua cabeça: “Escuta, meu bem!” A menina soluçava: “Leleco não é assassino! É mentira!” Engraçadinha apertou a cabeça entre as mãos. Não conseguiu entender. Criara Leleco; ele sempre fora assim, desde menino, de uma selvagem fragilidade. Nascera marcado para ser destruído e não para destruir. Sentou-se, en­quanto Amado Ribeiro, num exagero de sede, entornava de uma vez a água gelada. Devolve o copo à Guida (menina de uma graça quase imperceptível) e cochicha:
— Quer trazer outro?
O repórter estava achando que Guida nascera expressa­mente para dar de beber a quem tem sede. (Achou graça na própria observação.) Engraçadinha senta-se, enquanto as lá­grimas caem. Pensa em si mesma, na chuva. Ela se entregara a um conhecido de quarenta minutos. Leleco já era assassino e ela estava nua. Leleco, assassino, enquanto ela deixava-se despir por um desconhecido.
Leleco repetia:
— Eu matei porque... D. Engraçadinha, ele queria me fazer de mulher. Entende? Queriam me fazer de mulher. Eram três. Depois, dois saíram e ficou um. Tive que matar.
Falou para Engraçadinha e, em seguida, para Silene, Amado, Guida e a própria Letícia. Na sua obsessão, marte­lava:
— Tive que matar!
Amado começa a falar:
— Minha senhora, ele fez muito bem. Isso é o que se chama, no duro, minha senhora, batata!, legítima defesa da honra. Escuta, amanhã. Ouve, Leleco. Amanhã, minha senho­ra, eu venho aqui buscar Leleco.
Engraçadinha pensava: entregara-se a um desconhecido, esquecida de que sua filha estaria talvez grávida. Sua filha dei­xara de ser virgem e ela mordia, num peito de homem, o biquinho vermelho. Ao mesmo tempo, torturava-a a sensação de que traíra o filho. O marido e, também, o filho. Olhando sem ver, decidia, para si mesma: “Não telefono para o Cerimonial!” Tomou-se de ódio por esse desconhecido que a possuíra, pri­meiro no interior do carro e, depois, na chuva.
Amado acabava:
— Amanhã, o juiz leva o Leleco à Polícia. Olha. Tenho que ir, licença. Combinado, Leleco?

*

Letícia chamou:
— Quer vir aqui um instantinho, Engraçadinha?
Levanta-se. Ao passar por Leleco, pára um momento e, rapidamente, com uma espécie de ternura envergonhada, cur­va-se para beijá-lo na fronte. Vai para o quarto. Letícia fica em pé, enquanto Engraçadinha senta-se na cama. Lembrava-se de Luís Cláudio (tinha uma boca de dentes lindos, gengivas sadias e translúcidas).
Letícia começa, com uma grave ternura:
— Engraçadinha, olha. Eu quero mostrar que embora você tenha me recebido com quatro pedras na mão...
Irritou-se:
— Vamos mudar de assunto.
E a outra, vivamente:
— Mas eu quero provar que você foi injusta! Escuta. Primeiro, responde: você gosta muito desse rapaz?
Disse:
— Como se fosse meu filho. Eu mesmo não sabia que gostava tanto.
Ergue-se, chorando: “Letícia, esse menino não resiste. Esse menino morre. Você vai ver: ele vai se matar. Ele é um espírito fraco! E não resiste!” Letícia continua, com certo fervor:
— O que eu queria dizer é o seguinte. O advogado de Leleco, ele precisa de um bom advogado, eu pago. Engraça­dinha, naturalmente você, mas olha. Nós já tínhamos dinheiro. E eu me casei com um homem de posse. Pago o advogado. Você deixa que eu ajude? Ajude vocês?
Vacila:
— Naturalmente, você...
Apanha as mãos de Engraçadinha:
— Olha para mim. Quero que você leia no meu olhar. Eu conversei com um psicanalista. Há pouco tempo, compreendeu? Sabe o que ele me disse? Disse que uma mulher nova, sem vida sexual, pode sentir-se atraída por outra mulher. Sem que com isso... O psicanalista disse a mim que isso era normal e que... Eu me casei e sou hoje uma mulher normalíssima...
As duas se olham. Engraçadinha suspira:
— Estou confusa.
E a outra:
— Eu posso, afinal, não só ajudar esse rapaz mas... E suas filhas, Engraçadinha? Eu queria ajudar suas filhas...

*

Depois de andar meia hora, dentro da tempestade, no automóvel do jornalista, Dr. Odorico sentia-se um território ocupado por Tinhorão. Era como se o rapaz estivesse maci­çamente instalado em cada metro quadrado de sua vida. E concluía, a um só tempo fascinado e temeroso: “Só um irres­ponsável pode ser tão simpático!” Ao chegarem na altura do Catete, o Tinhorão pára o carro para afirmar, com uma dessas certezas inapeláveis:
— Mulher não tem pena de homem. Pra dormir, não!
Dr. Odorico, que era um homem varado de dúvidas, tinha medo dos afirmativos. Pigarreou: “Nem todas.” O outro deu uma réplica triunfal:
— Todas!
Quando o carro parou na porta do edifício, onde o juiz morava, havia entre os dois, um muito mais velho e o outro quase um garoto, uma dessas intimidades súbitas e incoercíveis. Tinhorão passara toda a viagem a dizer palavrões horrorosos e acontecera então o seguinte: a pornografia degelara os li­mites, as cerimônias. E já para descer, Dr. Odorico fez, ousa­damente, a pergunta:
— Escuta, Tinhorão. Eu queria te perguntar. Por acaso, você conhece um lugar...
O outro antecipa-se:
— Conheço. Geralmente, a minha alcova é o automóvel. Mas conheço um. Conheço um lugar que...
— Discreto?
Foi taxativo:
— Eu me responsabilizo. Um apartamento, onde a dona mora. Residência, percebeu? Não há perigo de batida policial. Quinhentas pratas e outra coisa: a dona é mãe de uma garota de oito anos e um guri de dois...
Dr. Odorico fez um discreto escândalo: “Crianças em rendez-vous?”

*
Mais tarde, estava toda a família na sala. Letícia repetia:
— Eu contrato o melhor advogado! Contrato, ouviu?
— Deus a abençoe!
D. Araci, que já chegara do Ceguinho, ergueu-se. Senta-se e repete, numa gratidão atônita:
— Deus a abençoe.

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