domingo, 6 de dezembro de 2009

CAPÍTULO XCV

Voltara tarde do Ceguinho. O médium vidente, que era realmente cego (tinha uma mancha roxa e diáfana no lugar de cada pupila), o médium morava em Del Castilho. Sua casa, numa avenida, não tinha água nunca. D. Araci teve de esperar seis horas. E, finalmente, quando sentou-se diante do Ceguinho, disse, baixo, numa espécie de febre:
— É sobre meu filho. Meu filho. Eu estive aqui — e repetia: — Meu filho.
O Ceguinho pousa o olhar morto. Há uma angústia entre os dois. Inclinando-se um pouco, D. Araci começa:
— Eu queria saber se...
O outro se antecipa:
— É inocente. Seu filho é inocente.
Nova pausa. Ele põe a mão na cabeça de D. Araci. Diz, com um mínimo de voz:
— Vejo um caixão.
D. Araci começa a tremer:
— Mas é... De quem?
E ele:
— Um caixão. Ali. Um caixão.
Apontava o fundo da sala, como se lá estivesse, fisica­mente, um ataúde não sei de quem. D. Araci ia fazer uma outra pergunta, mas alguém bate, de leve, nas suas costas. Vi­ra-se. Era a sobrinha do Ceguinho (uma crioulinha nova, magra, pele e osso, que tinha uma bronquite nata). Sussurra para D. Araci:
— Acabou.
Ao lado, estava um prato fundo, cheio de cédulas e pratinhas. (Vinham Cadillacs de Copacabana para consultar o Ceguinho.) Fora de si, D. Araci tira da bolsa cem mil réis e larga no prato. Sai, dali, desesperada e radiante. Desesperada porque havia um caixão e... Perguntava a si mesma: “Será de Leleco?” E, ao mesmo tempo, levava uma certeza feroz de inocência. Assim que D. Araci saiu, a crioulinha vira-se para os que esperavam. Disse, sem olhar ninguém, e com um de­sinteresse a um só tempo doce e obtuso:
— Outro.

*

Na casa de Engraçadinha, D. Araci chegou molhadíssima. Quiseram que mudasse a roupa. Teimou: “Não! Não quero! Não precisa!” Engraçadinha ralhou, baixo:
— Você vai se resfriar!
Mas ela não se convenceu. A saúde parecia-lhe um de­talhe mínimo e vil. O Ceguinho vira um caixão. Desejou para si mesma: “Tomara que seja o meu. Não de Leleco. Meu.” Disse, atormentada de febre:
— O Ceguinho que não erra. Até agora, não errou uma única vez. E duvido, compreendeu? Duvido!
Engraçadinha sussurra:
— Senta.
Reagiu:
— Quero ficar em pé. Pelo amor de Deus. Engraçadinha, não insiste. Está bem, está bem! fica quieta! Mas o Ceguinho, olha! O Ceguinho disse que o Leleco é inocente! Está ouvindo, meu filho? O Ceguinho me disse, a mim, ouviu? Antes que eu perguntasse, disse que você estava inocente!
Leleco ergueu-se:
— Mamãe, escuta, mamãe!
Zózimo vira-se para Guida. Sopra: “Faz um café bem quente, para D. Araci, faz.” A menina levanta-se e passa para a cozinha. Letícia sorri para Silene, com um olhar de doçura viva.
No meio da sala, D. Araci agarra Leleco pelos dois braços:
— Você é inocente, Leleco!
O filho perde a cabeça:
— Mamãe, olha pra mim, mamãe! Eu fui obrigado!
Repete:
— É inocente! Inocente!
E ele:
— Fui obrigado a matar!
D. Araci desprende-se:
— O Ceguinho! Mas escuta, Leleco! O Ceguinho que... Vem até senador consultar o Ceguinho. Leleco, o Ceguinho me disse que você era inocente!
O rapaz chora:
— Mamãe, eu matei!
Nesse momento, Guida aparece com a bandeja:
— D. Araci, a senhora aceita um cafezinho? Aceita, não aceita? Um cafezinho? Feito agora?
No seu dilaceramento, D. Araci já não entende mais nada. Perguntou: “Café?” Olha as caras que a cercam. Disse, com brusca docilidade:
— Um cafezinho, aceito.
Sentou-se e bebeu, sem mexer, o café muito quente. Le­leco, em pé, sente-se muito olhado. Pensa: “Olham porque eu sou assassino!” Via olhos por toda a parte. D. Araci agita-se, novamente: “Leleco! Se te perguntarem, na Polícia, nega, meu filho, nega, ouviu?” Diz isso e baixa a cabeça. Começa um choro manso de velório.

*

Às dez da manhã, o Dr. Odorico já ia sair de casa quando bate o telefone. A mulher atende. O juiz pergunta, da saleta:
— Comigo?
A mulher fala com a pessoa:
— Quem quer falar com ele? O quê? Não estou ouvindo. Quer repetir? Engraçadinha? Um momento.
Ao ouvir falar em Engraçadinha, o juiz finge uma pequena tosse e enfia a cabeça. Espantada, a esposa tapa o fone com a mão:
— Voz de mulher. Diz que é uma tal Engraçadinha não sei o quê.
Dr. Odorico abre os braços num falso escândalo:
— Mas ora! Diz que eu não estou! Trote, mulher, trote! Ninguém se chama Engraçadinha. Piada! Desliga!
Disfarçava sua confusão com agressividade. A outra des­pacha: “Não está!” Bate com o telefone e vira-se para o ma­rido com uma suspeita aguda: “Já não estou gostando!” Foi duro também:
— Não está gostando de quê? Raciocina, criatura! Isso não é nem nome! Você conhece alguma Engraçadinha?
Teimou: “Não parecia trote.” Olhou-a de alto a baixo e fez a ameaça:
— Escuta, mulher! Ou você muda de gênio ou não tere­mos bodas de prata!
Virou-lhe as costas, feliz da própria violência. A esposa veio atrás:
— Escuta!
Disse, da porta:
— Não quero conversa!
Saiu, porém, impressionadíssimo. Via diante de si duas hipóteses e ambas alarmantes: ou era mesmo Engraçadinha e ele não podia entender a ingenuidade atroz; ou era trote e, nesse caso, o romance secretíssimo caíra na boca do mundo. Fosse como fosse, admitiu para si mesmo com uma satisfação lúgubre: “É. Acho que não chegaremos às bodas de prata.”
Antes de ir para a cidade, resolveu passar no Largo do Machado. Entrou no café de sempre para comprar cigarros e trocar dinheiro. Viu, ao longe, o Carlinhos de Oliveira, o crí­tico. Pensa: “O Carlinhos é um centauro de Rimbaud e Be­rilo Neves.” Foi, então, que ouviu, perto, alguém anunciar:
— O Juscelino vai receber o Eisenhower com o berro nacional: “Me dá um dinheiro aí!”
O Dr. Odorico, que esperava o troco, volta-se e vê, junto ao balcão do café, uma rapaziada. E quem falava, entornando açúcar na xicrinha, era o Carlos Renato, da ZN. Riu todo o mundo, porque a única miséria que acha graça em si mesma é a brasileira. Sim, há, por vezes, em nossa miséria, um ci­nismo épico. Dizia ainda o Carlos Renato: um povo que con­serva, no subdesenvolvimento, um humor gigantesco é mise­rável, mas não derrotado.
Esperando o troco, Dr. Odorico não perdia uma palavra daqueles meninos. No grupo, via, ainda, duas outras amizades preciosas: o Luís Costa e o Oto Lara. Alguém perguntava ao Oto:
— Que tal o Israel Pinheiro?
O Oto mexia a xícara. Falou sério, quase agressivo:
— O Israel, olha! O Israel ainda quer fazer seis cidades!
Há um silêncio. Ninguém ri mais. O Oto toma uma certa distância da xícara, esquece o café:
— O Israel é uma força da natureza! O Israel chove, venta, faz sol, anoitece!
Por sua vez, o Carlos Renato insistia na exaltação da piada. Era piada que derretia as santas cóleras do povo. Junto ao cigarreiro, Dr. Odorico espera ainda o troco. Dera uma nota de quinhentos, que andava de mão em mão. (Ninguém tinha troco.) Agora quem estava com a palavra era o Oto. Seu brilho foi uma agressão para os circunstantes. O juiz acaba recebendo o troco e precipita-se. Bate no ombro do Luís Costa. E respira, a plenos pulmões, com as ventas dilatadas, o ar das Novas Gerações. Abraçado por um e por outro, pensa: “Só um jovem pode me ensinar o que fazer com Engraçadi­nha!” Cochicha para o Oto a sua solidariedade:
— Você falou bem sobre o Israel. É aquilo mesmo! Uma força da natureza. Também acho, também acho!
Mentira. Até então não achava nada. O Oto é que lhe dava uma versão inesperada e gigantesca do Israel Pinheiro. O Oto já ia saindo e o juiz trava o braço do Luís Costa:
— Escuta, Luís. Queria uma palavrinha tua.
O jornalista, que vinha de uma dieta feroz, estava mais fino e mais triste. Todavia, foi de uma cálida efusão:
— Vossa Excelência manda!
Procuraram uma mesa. Olhando-o, o juiz convencia-se de que a dieta espiritualiza a cara dos jovens e dá-lhes uma pun­gência de Werther. Dr. Odorico começa:
— Estou em dificuldades. E queria uma mãozinha tua.
Contou-lhe, sucintamente, tudo: o soneto de amor, do qual só existia a chave de ouro. Prometera a uma senhora dar-lhe um verso por dia: “Você podia fazer esse favor? Eu sei que você faz, com um pé nas costas, sonetos, às dúzias.” Luís Costa achou uma delícia aquele soneto que começava pelo fim. Enquanto Dr. Odorico recitava a chave de ouro, o jornalista (e poeta) apanhava a caneta-tinteiro:
— Vamos lá.
O Dr. Odorico confia na abundância verbal do Luís. E justiça se lhe faça: o outro foi de uma instantaneidade magistral. Bateu com os dedos no mármore, numa contagem sumária, e foi escrevendo. Acabou e leu:
Em meu sonho de lúbricos delírios,
Entrego o corpo lasso à fria cama.
Perguntava:
— Que tal, serve?
O juiz, que apanhara o papel, lia e relia:
— Lindo. Muito bonito. Mas escuta: esse negócio aqui: “lúbricos delírios”, não é meio atrevido, heim? Você não acha que... Acha? Está bom assim mesmo? Ótimo. Obrigado, Luís. Você é um anjo.

*

Nessa mesma manhã, Engraçadinha acordou, como sem­pre, às cinco e pouco. Abre a porta do quarto e dá com Durval, que vinha chegando. O primeiro impulso de Engra­çadinha foi de fuga. Ia entrar de novo. (Continuava com a sensação de que, na véspera, traíra o filho.) Mas conteve-se e pergunta, sôfrega:
— São horas, meu filho?
Falava baixo, porque Leleco dormia na sala em cima de um cobertor. Durval abre o colarinho. Engraçadinha pensa, com surdo sofrimento: “Se ele soubesse que eu ontem...” Súbito, balbucia: “Durval, você bebeu?” Ele respira fundo:
— Bebi, mamãe. Estou bêbedo. Bêbedo.
Sopra no rosto materno para que Engraçadinha sentisse o hálito violento de álcool. Ela tomou-se de pena e também de medo. (“Eu devia me sentir uma prostituta!”) Suplica, baixo:
— Vem dormir, Durval, vem!
Agarrou-a por um braço:
— Mamãe, eu mato esse juiz! Dou um tiro! Mato, ma­mãe!

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