quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

CAPÍTULO XCIX

Numa alegria, que a transfigura, vai na frente:
— Vem cá, vem! Chega aqui!
Está à porta do banheiro. Silene dá alguns passos e es­taca:
— Escuta, Letícia! Mas eu não quero tomar banho!
E a outra:
— Sei, mas olha: vem ver! Vem!
Disse, com surda irritação:
— Está na hora! Outro dia!
Numa naturalidade febril, Letícia entra no banheiro:
— O chuveiro aqui é muito bom. Forte. Frio e quente.
Silene aparece na porta. Pensa: “Quer me ver nua. Se eu tirar a roupa, me agarra.” Começa a ter medo (e, ao mesmo tempo, uma angustiada curiosidade). Letícia abre o chuveiro:
— Põe a mão! Põe!
Com um pouco de angústia, obedece:
— Fria!
E Letícia:
— Vê agora!
Disse:
— Quente!
A outra explicava o óbvio:
— Gradua-se, ouviu? E fica morninha! Escuta, Silene. Tira a roupa!
Recua:
— Não posso, Letícia! — e respirava fundo: — Outro dia!
Letícia Crispa a mão no seu braço. Diz a si mesma: “Tem medo. Desconfia. É sonsa.” A menina sorri, mas o seu lábio inferior treme. “Está nervosa”, pensa Letícia. Com a voz leve, macia, quer convencê-la:
— Não demora nada. Eu tomo outro banho para te fazer companhia. Como contigo. Sou muito mais velha de que você e não tenho nenhuma vergonha de ti. Olha: na tua idade, quantas vezes eu e tua mãe tomamos banho juntas! Você está fazendo um bicho-de-sete-cabeças e à toa!
Balbucia, com uma cintilação no olhar:
— Hoje, não!
Letícia decide: “Não vou insistir.” Diz, contida:
— Então, eu tomo. Um instantinho. Tomo banho e depois a gente desce.
Começa a abrir o vestido atrás. Silene recua:
— Espero lá fora!
— Fica. Que é que há? Te disse que eu não tenho vergonha de ti. É um minuto, Silene! E, depois, vamos almoçar. Faço questão de almoçar contigo. Faço questão.

*

Depois que os outros partiram, levando Leleco, Engraça­dinha vem caminhando, a pé, na direção da Candelária. Pensa, atravessando a rua: “Eu não ligo pra Leleco, nem pra Silene. Só penso em Luís Cláudio.” Gostaria de ter pena do rapaz; e ao mesmo tempo daria tudo para chorar pela filha. Mas só pensava no desconhecido: “Ele me deu uma carona e eu me entreguei!” Ia passando por uma banca, quando viu, num jor­nal exposto, o título:
LELECO, O VERDADEIRO ASSASSINO!
Espantada, comprou o jornal. E, ali mesmo, quis ler. Era uma reportagem imensa de Amado Ribeiro. Em pé e com certa angústia tentou a leitura. Só no meio da reportagem é que, subitamente, percebeu que não estava entendendo nada. Dir-se-ia que aquele era um texto chinês. Lia e não assimilava uma frase, uma palavra, uma vírgula. Quis reler e sentia-se cada vez mais distante do crime, de Leleco, da virgindade da filha. Parecia ter, diante de si, não uma página de jornal mas a imagem da própria nudez molhada e dentro de um violento clarão lunar.
Largou o jornal e caminhou como uma sonâmbula. De­sesperou-se porque não sofria. “Eu penso nele, só nele. Vou telefonar agora.” Viu um telefone público. E, então, já trans­figurada, foi até à caixa:
— Por obséquio, o senhor podia me ceder uma pratinha de dois cruzeiros?
Se o homem negasse a moeda, teria caído em desespero. O fulano olhou aquela senhora bonita e fez o troco. Recebeu a pratinha e sorriu para o português com uma gratidão quase terna:
— Agradecida.
Ao mesmo tempo que discava, sofria com a possibilidade de linha ocupada. Quando ouviu o ruído de chamada, respirou e sorriu, numa aguda felicidade. Ligava, desta vez, para o di­reto. Atendem e ela sorri, como se a pessoa pudesse ver.
— O senhor, por gentileza, podia me chamar o Luís Cláudio?
Na sua impaciência, sentia o estômago gelado. Do outro lado, Luís Cláudio apanha o telefone. Pergunta, alegremente:
— Você?
E ela:
— Sabia que era eu?
Luís Cláudio ria:
— Adivinhei. Escuta: estou acabando. Agora está no fim. Com esse negócio do Eisenhower o Cerimonial está histérico.
No telefone, parecia uma menina. Ele continuou. De fato, o Cerimonial estava aflitíssimo. Os sujeitos falavam, entre si, num assanhamento e num alarido de galinhas de desenho ani­mado. O rapaz baixava a voz, numa alegre indignação:
— Sabe lá o que é ver uns marmanjos, uns barbados discutindo se põem colete branco, colete preto? Tem mais. A gravata branca da casaca tem que estar por cima do colarinho. Quem usa por baixo é garçom. Eu não agüento mais. Te juro que não agüento mais.
E, súbito, baixa a voz:
— Você está onde?
— Por quê?
— Diz.
— Aqui na Rua Primeiro de Março.
— Você me espera?
Nervosa, reage:
— Não, não! Não posso! Escuta, Luís Cláudio, escuta. Eu falo com você, mas só pelo telefone. Pessoalmente, não — e repetia numa excitação sem motivo: — Pessoalmente, não. Foi só aquela vez. Escuta, escuta! Você sabe que eu. Não sabe? Deus me livre e nem é bom falar!
Ele ri:
— Meu coração, escuta. Olha: vamos fazer o seguinte. Eu passo de automóvel e te vejo. Não falo contigo. Te vejo e pronto. Não paro. Reduzo a velocidade, te olho e vou-me em­bora. Não falo contigo. OK?
Hesitava ainda:
— Se você me promete...
— Te juro.
E ela:
— Bem. Mas olha: você olha, só. Não pára. Eu estou, está escutando? Estou na porta da catedral.
— Não me demoro. Até já.
Desligou. Vinha tão feliz que, ao passar pelo homem da caixa, sorriu-lhe docemente. O sujeito abre o cumprimento: “Passar bem, minha senhora.” Andando na direção da catedral, ela queria pensar na filha — na virgindade perdida da filha; e no sofrimento de Leleco. Naquele momento, o rapaz estaria na Polícia, confessando: “Eu matei! Eu matei!”

*

Cada flash parecia doer, materialmente, em Leleco, como uma chicotada. Na sua fragilidade pânica, virava-se para o fo­tógrafo e tinha vontade de gritar: “Parem com essa luz! Pa­rem com essa luz!” Na delegacia apinhada, ele repetia:
— Eu matei! — pausa e continua arquejante: — Eu ma­tei porque queriam me fazer de mulher.
Antes de começar o depoimento, Dr. Odorico chamara Miécimo de lado: “Escuta aqui! Eu me interesso por esse ra­paz como se fosse filho meu. Miécimo, presta atenção: você é responsável, entende? Responsável...”
O outro interrompe:
— Mas Dr. Odorico! O senhor me conhece! Sabe que eu sou contra o espancamento. Eu não torturo! Nunca, até hoje, eu dei uma bolacha num preso! Eu não bato! Acho que é um crime e não bato, Dr. Odorico!
O juiz olhava para o delegado com uma sensação de des­lumbramento: “Como é cínico! Vá ser cínico assim no...” E, então, o Amado Ribeiro, que ouvia, de lado, atalha:
— Ó Miécimo! Você se lembra daquela vez? Aqui mes­mo. Sim, aqui mesmo. E você deu um chute na barriga da­quela preta grávida?
O delegado abre os braços:
— Eu? Em mulher grávida? Isso é piada! Dr. Odorico, isso é piada! O Amado tem essa mania!

*

Com uma touca de borracha, para não molhar os cabelos, Letícia ensaboava-se debaixo do chuveiro. Silene olhava com um tênue sorriso, um enleio muito leve. A outra dizia:
— Pode olhar. Olha. Eu não tenho vergonha de ti. Tão natural!
E pensava no que lhe dissera, certa vez, um psicanalista. Dissera que, naquela idade, o organismo do homem ou da mu­lher ainda não escolheu o sexo. Vacila entre um e outro.
Depois, enxugando-se, Letícia faz-lhe a pergunta:
— Tenho o corpo feio?
— Bonito!
— Acha?
Passa por ela. Bate-lhe, de leve, na face. Suspira: “Você é um amor!” Vão para o quarto. E, lá, Letícia perfuma os braços, os seios. Súbito, vai abrir uma gaveta:
Era um lança-perfume. Pergunta: “Gosta de cheirar?” Ela própria acrescenta: “Quem não gosta? Cheira um pouco!”.

Nenhum comentário: