quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

CAPÍTULO XCVIII

A mão de Letícia descia do ombro para o braço. Silene recua:
— Letícia, você não disse que queria falar sobre o Leleco?
Está parada e atônita. Ouve as palavras de Engraçadinha: “Gosta de mulher.” Tem medo. Olha em torno. Letícia pensa: “Preciso ter calma.” Muda de tom. Gira sobre si mesma, numa espécie de pirueta e diz a primeira coisa que lhe vem à ca­beça: “Gostei desse hotel. É bom.”
Senta-se na cama para levantar-se em seguida:
— Ah, o presente! Escuta: já converso contigo sobre o Leleco. Quero te mostrar o presente. Vem cá.
Um pouco sôfrega, Silene balbucia:
— Estou com um pouquinho de pressa!
Letícia desfaz o nó do barbante dourado:
— Não sei se você vai gostar, não sei. Eu acho um amor. Uma belezinha.
Tira a calcinha, minúscula, transparente, elástica.
Pergunta, baixo, sem desfitá-la:
— Que tal?
Respondeu, num sopro:
— Linda!
E Letícia, ofegante de alegria:
— Olha: eu vi uma porção, até que escolhi esta. Não é um sonho? Você gostou?
Apanha a calcinha pelas duas extremidades:
— Muito!
Na sua naturalidade afetada, disse:
— Tira a tua e põe esta. Põe.
Vacila:
— Aqui?
Fez um terno escândalo:
— Mas oh, Silene! Até que, francamente! Vergonha de mim? Vê lá!
Silene sorri, vermelha. Na véspera, despira-se para Letícia, deixara-se enxugar, da cabeça aos pés. Mas não sabia que... Agora, no hotel, parecia estar ouvindo a voz de En­graçadinha: “Gosta de mulher.” Letícia diz para si mesma: “Desconfia.” Silene explica:
— Não é vergonha propriamente...
Sentiu na menina um certo abandono e fez alegremente a ameaça:
— Tira ou fico zangada!
O riso vem:
— Mas não olha! Não olha!
Letícia ri também (com certa angústia):
— Para uma mulher, nada é mais importante que a cal­cinha. E você, olha: eu não quis dizer nada. Mas olha: as tuas são bem, você me desculpe, são tão pobrezinhas! Agora põe, põe! Deixa eu ver! Levanta a saia, minha filha! Ah, me­nina! Menina! Mostra só um pouquinho. Eu quero ver! Linda e como fica bem em você!
Silene olha em torno:
— Acha? Eu queria ver no espelho!
— Vem, vem!
Diante do espelho, ergue a saia. Tem uma espécie de vertigem:
— Que beleza!
Letícia fala, numa febre:
— Eu te arranjo outras! E escuta: vai com esta.
Vira-se:
— E a minha?
— Fica comigo. Mando lavar e te devolvo outro dia. E outra coisa, Silene. Eu agora, depois que fiquei viúva, estou muito só. Não tenho ninguém, Minha vida é tão triste e eu, olha... Para mim, será uma felicidade ajudar vocês. Ah, ou­tra coisa: desde ontem eu estou pra te perguntar. Você gosta de Leleco? Gosta?
— Eu?
Apanha a mão de Silene:
— Gosta?
Baixa os olhos:
— Mais ou menos.
E ela:
— Vocês não têm nada e eu sou rica. Leleco depende de mim. Um processo custa dinheiro e, nessa terra, sabe como é. Vou arranjar o melhor advogado. O melhor! E, até, dois. Tenho dinheiro, Silene! E uma menina como você não é para andar de lotação. Vaz Lobo não foi feito pra você. Você, olha! Te falo com pureza d’alma! Você merece!

*

Já sabia o telefone da mesa do Itamarati. Mas não queria falar dali para o Luís Cláudio. Discou para D. Araci, cha­mando Leleco e dizia:
— Vem com teu filho. Eu te espero aqui. Mas vem já. De táxi, claro!
Desliga e ergue-se. Dr. Odorico vem risonho ao seu en­contro. Acompanha-o o juiz-substituto (mais do que nunca sente a humilhação do barrigudo). Engraçadinha está dizendo:
— Escuta, Odorico. Eu vou dar um pulinho ali adiante. Tenho que fazer uma compra. Volto já. Não demoro. Espera que eu volto.
Disse e repetiu: “Espero, espero!” Engraçadinha sai. Fora há poucos minutos que, de repente, decidira telefonar. Sabia, desde já, que ia ter, em seguida, um arrependimento mortal. E perguntava a si mesma por que essa brusca e desesperadora nostalgia. Pensou: “Eu ouço a voz e desligo.” Começa a pro­curar um telefone. Entra num armazém;
— Dá licença de falar no telefone?
— Ali.
Um homem estava falando. Engraçadinha espera. Por um momento, teve a tentação de fugir. Pensava: “Durval tem ciú­mes de mim como um namorado.” Sentia que o maior traído da véspera fora, não o marido, mas o filho. O sujeito do tele­fone ria alto:
— Tem lido as memórias do Gilberto Amado? Escuta! É uma falsificação! O Gilberto não apresenta um pulha, um canalha! Em toda a República, ele não vê um presidente patife, um ministro sem-vergonha, um sábio que seja nobre e limpamente um cavalo de 28 patas! No seu mural, falta o excremento. Não enxerga uma prostituta na família brasileira: o Gilberto faz relações públicas com o passado. Reabilita e promove uma série de cretinos retrospectivos — e repetia: — É o Proust das relações públicas.
Finalmente, o desconhecido despedia-se, ruidosamente: “Mas telefona. Tchau!” Sôfrega, Engraçadinha pôde apanhar o telefone. E, súbito, enquanto discava, imagina: “E se ele não estiver?” A simples hipótese deu-lhe um sofrimento agudo. Do outro lado a telefonista atende. Crispada, pede: “Por obséquio. Cerimonial, sim?” Espera um pouco. Voz de homem. Com a garganta gelada, diz:
— Eu queria falar com Luís Cláudio Fróis.
Nova espera. Pensa: “Eu não presto.” Não se lembrava de Zózimo. Era como se fosse adúltera, não do marido, mas do filho. Escuta a voz de Luís Cláudio:
— Pronto.
Muda, teve uma contração de estômago. Decide: “Não direi nada.” Ficaria ouvindo só. Ele insiste: “Alô? Alô.” Ela pensa em desligar. Mas acaba falando:
— Quem fala?
E ele: “Janet?” O simples fato de ter sido reconhecida, imediatamente, fez-lhe um bem desesperador. Respira fundo: “Sou eu.” Não sabia o que dizer em seguida. Luís Cláudio prosseguia com a voz a um tempo doce e viril:
— Escuta, meu bem. Nós estamos aqui preparando a re­cepção do Eisenhower. Está divertido. Só se discute sobre colete preto, colete branco, fraque, casaca, calça listrada. Mas olha: faz o seguinte...
Tudo o que ele dissesse, Engraçadinha acharia lindo. Numa tristeza deliciosa, teve vontade de chorar. Luís Cláudio continuou:
— Deixa acabar essa reunião. Mas você vai telefonar agora para o direto. Telefona para o direto. Toma nota. Apa­nha o lápis e toma nota. Posso dizer? 23-8381. Tomou nota: 23-8381. É o direto. Você telefona!
— Telefono.
Saiu, de lá, fora de si. O homem da caixa teve que cha­má-la: “Três cruzeiros.” Abriu a bolsa, desorientada: “Des­culpe.” Deu cinco e não esperou o troco. Foi, a pé, até quase a Candelária e voltou. Quando aparece no Foro, já estavam, lá, à sua espera, D. Araci, Leleco, Amado Ribeiro e, natural­mente, Dr. Odorico. Este pensou, ao vê-la: “A geladeira foi o maior golpe da minha vida.” Amado Ribeiro orientava Le­leco:
— Não tenha medo do Miécimo. O Miécimo não é de nada.
D. Araci perguntava, a um e outro: “Meu filho vai con­fessar?” Dr. Odorico explicou.
— Minha senhora, eu estou lá. O Leleco presta o de­poimento e, depois, é posto em liberdade. Não há nada e eu fico até o fim.
Com um olhar de louco, Leleco aperta o braço do juiz:
— E se eu fugir? Eu preferia fugir. Tenho que me apre­sentar? — e repetia, na sua fixação: — E se eu fugir?
Amado Ribeiro agarra-o:
— Pra quê, rapaz? Você vai ser posto em liberdade! Va­mos embora! Dr. Odorico, vamos?
O juiz baixa a voz:
— Você vai, Engraçadinha? Quer vir? Fica? Ah, com­preendo!
Ela suspirava: “Estou muito nervosa. É melhor não!” Dr. Odorico preferiu não insistir:
— Então, fica combinado. Hoje, sem falta, eu levo o Tinhorão. Levo, sem falta. Gostou então do versinho?
Letícia vira-se para Silene:
— Você vai almoçar comigo.
— É tarde.
E a outra:
— Tarde nada. Cedo. Almoça, sim, senhora. Depois, olha: você vai de táxi. Toma banho e almoça.
Vira-se:
— Banho?
Deu-lhe o braço:
— Olha o calor que está fazendo. Você está suada. Faz bem. Toma banho. Refresca. Vem.

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