segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

CAPÍTULO XCVI

Engraçadinha levou-o para o quintal:
— Vem cá. Vem. Vamos conversar direitinho.
Durval repetiu, na sua obsessão:
— Estou bêbedo, mamãe. E a senhora sabe por quê, não sabe?
Agarrou-o pelos dois braços. Disse, doce, mas firme:
— Olha pra mim e responde: você acha que eu, que sua mãe, responde! Acha que sua mãe pode fazer um ato que... cometer uma indignidade?
Nunca fora tão parecido com o Sílvio. Ele arquejava:
— Mamãe, escuta. Presta atenção — e continua, com a língua pesada: — vocês podem usar essa geladeira. Todos aqui podem usar essa geladeira. Eu não. Eu não uso. Não ponho a mão nessa geladeira. Não ponho porque...
Quer sacudi-lo:
— Durval, não diz bobagem. Você sabe o que aconteceu com Leleco? Já sabe? Não sabe?
Agarra-se ao filho. Este quer desvencilhar-se: “Não in­teressa Leleco...”
Andara a noite toda na tempestade. De vez em quando parava num balcão para tomar uma batida. E partia, de novo, repetindo para si mesmo: “O juiz está dando em cima de ma­mãe. Está dando em cima.” Houve um momento em que, no meio de uma rua escura, bêbedo, atolado, soltou, de repente, um grito. Teve, debaixo da chuva, a sensação de que outro gritara e não ele e então correu, chorando, como se fugisse do próprio grito. Mais tarde, na sua fixação de ébrio, decidia: “Essa geladeira não existe. Para mim, não existe. Não ponho a mão nessa geladeira.” Beberia água da bica, mas... E, agora, Engraçadinha argumentava, perdida de ternura e de ver­gonha:
— Que criancice! Você parece criança! Que é que tem a geladeira, ora? Escuta, Durval! O importante é que Leleco, ouviu? Leleco matou um homem. Precisamos, ouve, Durval...
O rapaz veio sentar no pequeno degrau da cozinha. Co­meçava a chorar: “Mamãe, não quero que a senhora...” In­clinou-se e dizia:
— Chega pra lá. Chega, meu filho.
Sentou-se ao lado do rapaz:
— Durval, eu te juro! Olha pra mim. Não há mulher mais pura que tua mãe. Duvido! Eu juro que...
Súbito, pára. Lembrava-se da véspera, do seu abandono selvagem, de sua nudez na tempestade. Passa a mão nos ca­belos do filho. Ele chorava como uma criança:
— A senhora quer me ver morto como nunca, hem? A senhora nunca...
Apertou a cabeça do filho de encontro ao seio. Teve von­tade de chamá-lo, não de Durval, mas de Sílvio. Nunca fora tão Sílvio, na sua beleza desesperada.

*

Ao chegar na porta do Foro Criminal, viu um advogado conhecido, o Palhares. Chamou-o a um canto. Faz-lhe em segredo a pergunta inesperada:
— O que é que você acha do Israel Pinheiro?
O Palhares tira um pigarro:
— Bem...
Dr. Odorico tapa-lhe a boca:
— O Israel Pinheiro é uma força da natureza. Entende? Uma força da natureza!
O outro tosse ligeiramente: “Mas a imprensa espina­fra...”
Dr. Odorico caçou-lhe a palavra:
— Ora, a imprensa! — e riu, com largo sarcasmo. __
Meu caro Palhares, a imprensa é analfabeta. Espinafra o Israel, como espinafrou o Rio Branco, a vacina obrigatória, o Osvaldo Cruz.
— Mas o Correio da Manhã...
Novamente, o juiz o interrompe. Recua um pouco e ergue a voz:
— Acredite no que lhe estou dizendo! O Israel...
Deixara para o fim o grande efeito:
— O Israel é uma força da natureza! Venta, chove, anoi­tece. Chove, entendeu?
Humilhado por esse brilho surpreendente, o Palhares bal­bucia:
— Bonito!
Dr. Odorico estende-lhe a mão, com uma modéstia triunfal:
— Passar bem, meu caro Palhares! Até mais ver!
Entrou no Foro e pensava em esmagar também o juiz-substituto com a frase do Oto Lara. Mas quando chega na Vara, o Dr. Eustáquio atira-se, aflito:
— Olha! Teve aí uma dona te procurando!
Pálido, pergunta:
— Era como?
E o outro, com uma salivação intensa:
— Parecida sabe com quem? Aquela artista. Como é mesmo o nome daquela artista? Aquela que... Olha! Traba­lhou no Vento Levou... Vivian Leigh! Isso! Vivian Leigh!
Dr. Odorico dá um passo atrás:
— Mas que azar! Há muito tempo? Deixou recado?
Subitamente, descobria a semelhança entre as duas: entre Engraçadinha e a estrela. Parecidíssima! O olhar, a boca, o nariz, o queixo. O Dr. Eustáquio insistia:
— É a Vivian Leigh daquele tempo. Agora a Vivian Leigh está meio borocochô! Mas naquele tempo!
Andando de um lado para outro, furioso e maravilhado, o juiz não se perdoava de ter chegado tarde. Via, agora, que o telefonema que lhe parecera falso não era falso coisa ne­nhuma. Fora a própria! “Que imprudência!”, exclamou para si mesmo. Mas estava disposto a abençoar qualquer impru­dência, qualquer leviandade do ser amado. Excitado, pensa: “Estou vendo que as minhas bodas de prata vão fracassar!” Na obsessão de Engraçadinha, queria acreditar que as bodas de prata são, via de regra, uma festa cínica, que finge come­morar um amor enterrado.
O juiz-substituto sopra o vaticínio otimista:
— Deve voltar.
Esfrega as mãos, com o olhar faiscante:
— Tomara!

*

Engraçadinha deixara o filho dormindo. Depois de cho­rar, ele, com uma docilidade súbita de bêbedo, abandonou-se. As meninas acordaram e Durval pôde deitar-se na cama de Silene. Em seguida, uma das filhas falou, da casa de D. Araci, para a Prolar avisando: “Durval mandou avisar que está doente e não vai hoje.” Quase às dez horas, Engraçadinha saiu com Silene. Estava combinado que Dr. Odorico acompanharia Leleco à Polícia. O rapaz ficou esperando que, da cidade, ela o chamasse.
Antes de tomar o lotação, telefonou para a residência do juiz. Não estava. Teve uma dúvida: “Será que eu fiz mal?” Sabia que, normalmente, qualquer esposa recebe, com uma pulga atrás da orelha, um telefonema feminino. Ao mesmo tempo, o seu desespero não admitia muitos escrúpulos. Na ci­dade, corre para o Foro. Dr. Odorico ainda não chegara. De­cide consigo mesma: “Volto depois.” Apanha Silene, que a esperava na porta, e descem a Rua São José.
Súbito, Engraçadinha toma coragem:
— Escuta, minha filha, olha aqui. Eu não quis que você fosse ao colégio porque...
Estaca. Pergunta a si mesma se vale a pena prosseguir. Silene arrisca:
— É sobre Leleco?
Suspira:
— Não. É outra coisa. Minha filha, há pessoas que acham o seguinte: que uma mãe não deve dizer tudo a uma filha. Penso de modo diferente.
Silene não entendeu ainda. Engraçadinha continua:
— Eu acho que, afinal, a maior amiga de uma filha é a própria mãe. Não deve haver segredos entre as duas.
Pausa. Silene, com um pé atrás, diz:
— Também acho.
Chegaram ao fim da Rua São José. Entram numa leiteria do Largo da Carioca. Sentam-se. Engraçadinha estava enervada de falar em pé e andando. Enquanto o garçom vai e vem, Engraçadinha toma respiração:
— Minha filha, é o seguinte: você é criança...
Lembra-se, subitamente, que a filha já conhecia o amor e muda de tom e de raciocínio:
— Eu sei que, hoje, aprende-se muito depressa. No meu tempo, era diferente. Mas há coisas que uma menina ainda não sabe e... Compreende? O que eu queria é prevenir você sobre Letícia.
Pausa. Silene pergunta:
— Por quê, mamãe?
E Engraçadinha:
— Ontem, eu vi Letícia falando baixo com você. Falando baixinho, cochichando e eu não gostei, minha filha, não gos­tei. Ela é uma senhora e você uma menina. Por que segredinho?
No seu espanto, balbucia:
— Que mal há, mamãe?
Engraçadinha escolhe palavras:
— Letícia é uma dessas mulheres que... Você entende? — e disse a verdade, duramente: — Letícia gosta de mulher. Diz que não, mas eu sei. Certas coisas, enxergo longe. E não quero, Deus me livre!, não quero que ela pense que você...

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