terça-feira, 8 de dezembro de 2009

CAPÍTULO XCVII

Fez espanto:
— Gosta de mulher?
Engraçadinha ralha, quase sem mover os lábios:
— Fala baixo!
Olha, em torno, assustada. E teve medo que o garçom que estava um pouco atrás, junto a uma mesa vazia, pudesse ter escutado. No seu espanto, e inclinando-se, pergunta:
—- Mas como é, mamãe? A Letícia que... Não estou entendendo.
Entendera, sim. Pensava: “No colégio houve um caso as­sim.” Lembrava-se de que ela mesma, certa vez, vira duas coleguinhas beijando-se na boca. Fora um escândalo que a di­retoria tivera de abafar. E, agora, Silene insistia:
— Mas isso é batata ou...
Engraçadinha enxugava os lábios com o guardanapinho de papel:
— Se eu estou dizendo é porque é.
Por um momento, Silene não sabe o que dizer, o que pen­sar. Engraçadinha vira-se para o garçom:
— Quer pagar aqui?
Quando o homem sai, para apanhar o troco, Silene baixa a voz:
— Mamãe, mas a Letícia não vai ajudar Leleco?
O garçom apareceu com o troco. Engraçadinha conta e deixa, em cima da bandejinha, uma cédula de dois cruzeiros. O homem recolhe a gorjeta. Engraçadinha, que ia levantar-se, resolve ficar mais um pouco. Começa:
— Olha. Vai ajudar e está certo. Mas nada tem a ver uma coisa com outra, evidente, ora essa! Ajuda, e daí? Mas o que eu não quero, escuta, Silene, o que eu não quero, presta atenção: não quero que você, por exemplo, saia com ela. Não quero, entendeu?
Balbucia:
— E se ela convidar?
— Você evita, percebeu? Evita. Silene, eu sei o que eu estou dizendo. Sei. E agora vamos. Vamos que Odorico já deve ter chegado.
Levantam-se. Saindo da leiteria, Silene diz para si mesma: “Imagine se mamãe sabe que Letícia me viu nuazinha, que me enxugou.” Entram na Rua São José e esperam o sinal, para atravessar a Avenida. Em cima do meio-fio, enquanto vem da Esplanada uma golfada de carros, Silene imagina: “Por isso é que ela elogiou tanto o meu corpo. Logo vi!” Atravessam, fi­nalmente.
Engraçadinha vai dizendo:
— Se ela te convidar, já sabe. Você diz o seguinte: que vai falar comigo. Ouviu, Silene? Porque, olha: eu vi a Letícia te olhar de um jeito que eu não gostei. Não gostei nada!
Entrando no Foro, ao lado de Engraçadinha, Silene li­gava uma coisa e outra. Na véspera, houve um momento em que, de fato, Letícia soprara ao seu ouvido: “Qual é o teu manequim?” Respondeu, baixo também: “44”. Engraçadinha vira o cochicho e decidira: “Tenho que avisar Silene. Não vou admitir que...”
— Olha, minha filha. Espera aqui. Tenho que falar umas coisas com Odorico e...
Ao vê-la, Dr. Odorico arremessou-se, vermelhíssimo:
— Quanta honra!
A úlcera vibrou como nunca. A poucos passos, o Dr. Eustáquio erguia-se e, mesmo, perfilava-se. Diz para si mesmo: “É escritinha a Vivian Leigh, não a atual, mas a do Vento Levou!” Já o Dr. Odorico o chamava:
— Chega aqui, Eustáquio!
O outro abotoa-se, gravemente; e vem (com uma certa vergonha da própria barriga). Por um momento, chega a pen­sar em beijar-lhe a mão. Mas era uma natureza tímida, quer vivia de repressões. (Fez mais esta.) Dr. Odorico engrossava a voz:
— Este é o juiz-substituto, Engraçadinha.
E ela, com um rubor muito lindo:
— Satisfação.
O Dr. Eustáquio afasta-se. E, então, Dr. Odorico limpa a voz:
— Eu soube que...
Disse, agoniada:
— Telefonei pra sua casa. Você já tinha saído e...
Perguntou, com o olho vivo:
— Alguma novidade?
Levou-o para perto da janela. Começou:
— É o Leleco, aquele rapaz. Como se fosse meu filho. Vim aqui porque...
Antecipou-se:
— Você sabe ou não sabe? Que eu. Olha, Engraçadinha: o que você quiser! — e repetia, arquejante de amor: — O que você quiser! Pois não, pois não! Levo à Polícia, levo, claro! De fato, lá baixam o pau! São uns inconscientes!
Aperta o braço magro do juiz:
— Odorico, não deixe que maltratem o Leleco!
Deu um repelão feroz:
— Ai de quem! Absolutamente! Ninguém encosta a mão no menino!
Ela respira fundo. E, então, o juiz, com uma humildade sôfrega, sussurra:
— Olha, Engraçadinha, olha. Estou aqui com o versinho. Fiz hoje, compreendeu? Olha para os lados e, numa an­gústia deliciosa, passa-lhe o papelzinho.

*

Na véspera, antes de sair, Letícia deixara, na mão de Si­lene, um papelzinho. Cicia:
— Telefona. Esse número. Precisamos conversar.
E, pela manhã, antes de sair com a mãe, Silene correra para a casa de D. Araci. De lá, disca para o número do pa­pelzinho. Atendem:
— Hotel Serrador. Bom-dia.
Fala, baixo:
— Eu queria falar com o quarto...
Lê, novamente, o papel:
— Quarto número...
Espera. Vem a voz de Letícia:
— Pronto!
— Como vai?
E Letícia:
— Silene? Tua mãe sabe que você está telefonando?
— Não disse a ninguém.
Letícia exulta:
— Pois é! Segredo! Segredo porque, olha: eu quero fazer uma surpresa pra tua mãe. Depois te explico. Mas olha! Si­lene, está me ouvindo?
— Fala!
Letícia dá risada no telefone:
— Se você me visse, ouviu? Está escutando? Se isso fosse televisão, você ia me ver, sabe como? Saí do banheiro para atender — ria: — Estou pelada! Ouviu? Sua voz está sumindo! Estou pelada. Saí do chuveiro e... Peladinha!
Silene interrompe:
— Letícia! Escuta: eu não posso me demorar, e aquilo?
Letícia baixa a voz:
— Você pode vir?
— Depende. Só vendo. Depende de mamãe. Vou sair com mamãe. Mas se eu puder, eu vou!
Letícia fala, com uma espécie de febre:
— Está ouvindo? Eu vou sair agora. Passo na Sloper para comprar teu presentinho. Depois, está escutando, Silene? O telefone está ruim, não está? Olha: depois eu volto para o hotel e não saio mais. Eu te espero.
— Se eu puder, depende de mamãe, se eu puder, vou, sim!
E a outra:
— Um beijo. Estou te mandando um beijo. Tua voz fugiu outra vez! Silene? Um beijo!

*

Engraçadinha contava que o Leleco matara porque... Dr. Odorico ouvia, grave e, mesmo, fúnebre. De vez em quando, valorizava as passagens com uma exclamação: “Ima­gine!” “Ora veja!” Da mesa, o juiz-substituto atirava, de vez em quando, um olhar para Engraçadinha. Estava mais con­vencido do que nunca que era igualzinha à Vivian Leigh (não a atual, mas a Vivian Leigh em seguida à primeira noite com Clark Gable). Quando Engraçadinha acabou, Dr. Odorico vi­brava:
— Vou te dizer o seguinte. Eu sou um juiz, mas se eu tivesse um filho e meu filho matasse. Se matasse por esse mo­tivo, dou-lhe minha palavra, eu diria: “Muito bem, meu filho!”
Engraçadinha, que chorava discretamente, apanhou o len­cinho no bolso e assoou-se. Dr. Odorico pigarreia. Passa, vi­vamente, de um pólo a outro:
— Mas gostou mesmo do versinho?
Suspira:
— Muito.
Era preciso, porém, chamar Leleco. Engraçadinha sai um momento para falar com Silene:
— Minha filha pode ir. Vai pra casa. Tudo bem. Vai. Vai pra casa. Eu fico. Vai direitinho.
Beija a menina e volta. A felicidade chegava a doer no juiz. Repetia para si mesmo: “É a Vivian Leigh! É a própria! E o Tinhorão tem que me arranjar esse apartamento!” Ao mesmo tempo, estava disposto a desvencilhar-se dos seus es­crúpulos de velho e recorrer ao mais moço. (Queria acreditar que a experiência sexual do Tinhorão estava mais atualizada.) Engraçadinha aparece e pede:
— O catálogo. Eu queria telefonar. Pode me ceder o ca­tálogo?
O juiz-substituto apanha, tumultuosamente, uma lista. Engraçadinha agradece. E, então, o Dr. Odorico quis fazer alarde de discrição. Puxa o Dr. Eustáquio e os dois afastam-se osten­sivamente. Engraçadinha procura o telefone do Ministério das Relações Exteriores, Perdera o telefone de Luís Cláudio.

*

A própria Letícia abriu a porta:
— Que alegria! Entra, entra!
E Silene:
— Vim chispada. Mamãe não sabe.
Febril de felicidade, Letícia pergunta:
— Está calor, não está? Não prefere tirar a roupa? Tira!
Fica à vontade! Eu também tiro!

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