Balbuciou:
— Papai!
Por um momento, contemplou, gelada, em silêncio, aquêle pai quebrado, em ruínas. Êle repetia para si mesmo: — “Não quero chorar! Não posso chorar!” Mas enterrou o rosto nas duas mãos; cerrava os dentes como se quisesse morder o próprio choro. Estupefata, Engraçadinha pensava: — “Irmão! Que irmão? E por que irmão?” Ao mesmo tempo, teve uma sensação de pena, ou melhor: — não era pena, era repugnância ou as duas coisas juntas, talvez. No seu desespêro, Dr. Arnaldo diz de si para si: — “Ela me vê chorando como um pulha!” Súbito, teve a certeza de que a menina o desprezava. Engraçadinha jamais sonhara que, algum dia, aquêle velho magro, com a sua face hirta de máscara, pudesse chorar com essa violenta, essa apaixonada fragilidade. Teve vontade de gritar-lhe: — “Pára de chorar, pára!” Talvez sentisse desprêzo, talvez. Mas sentia também uma crispada vergonha dessas lágrimas de homem e de velho. — Ela deixou boiando no ar a pergunta:
— Irmão?
Repetiu outras vezes, sentindo que a garganta se fechava: — “Irmão?” Teria enchido a sala com os gritos de “Irmão?” Gritaria até rebentar a voz: “Por que irmão?”. Dr. Arnaldo erguia o rosto, ofegante, passava as costas das mãos nos olhos. Nunca ninguém o vira chorar, nunca. Procurando o lenço, pensava: — “Ela me despreza, sim!” E onde está o diabo do lenço? Meteu a mão no bôlso das calças. Ao longo dos seus quarenta anos de vida, só chorara sòzinho (enfim, encontrou o lenço num bôlso inesperado). Quantas vêzes, no quarto, metera a cara no travesseiro para sufocar a saudade de uma morta? Ó não se perdoava, agora, de ter chorado na frente da filha, que era a pior testemunha, a mais implacável. Já se assoara e guardava o lenço no bôlso traseiro da calça. Numa calma dilacerava, espiava a filha. Engraçadinha estava branca e com o lábio inferior tremendo. Diz:
— Mas eu não entendi, papai!
Enojado da própria fraqueza, Dr. Arnaldo não respondeu imediatamente. Ao passo que ela, agora que o vira tão fraco e perdido, — jamais vira um homem chorar assim — ela começava realmente a desprezá-lo. Mas talvez pelo hábito do respeito ou do mêdo, ainda não tinha consciência dêsse desprêzo. Dr. Arnaldo baixou a voz, as suas mãos estavam trêmulas:
— Teu irmão.
Ela não quer compreender, não quer aceitar. “Por que meu irmão?” Foi a pergunta desesperada. O pai respondeu:
— Porque é meu filho! — e repetiu, alteando a voz: — Meu filho!
Ergueu-se e anunciou, alto e vibrante, como se desafiasse um invisível auditório: — “Meu filho!” Ela baixa a cabeça, une as mãos na altura do peito, fecha os olhos. Mas em vez de fazer uma prece pensava: — “Filho do meu pai! Meu irmão!” Levantou-se para sentar-se, novamente. Dr. Arnaldo apanha a bengala e, já com certa excitação, caminha até o fundo da biblioteca. A humilhação de ter chorado diante da filha, chegava a doer-lhe nos ossos. Precisava exaltar-se de nôvo, gritar, sacudir a bengala, para meter-lhe mêdo. De longa data, era de parecer que a mulher entende mais o grito, entende mais a ameaça do que o argumento, o fato. Tôdas gostam de sofrer na carne o espasmo do medo. “Vou gritar”, decidia. Mas, antes que êle se aproxime, Engraçadinha rompe o silêncio :
— Papai, quer chegar aqui um instantinho, papai?
O pai percebe o tom de surda irritação. Imagina: — “Será que vai ter a audácia de me interpelar?” Mais do que nunca sentiu que precisava vencer pelo mêdo. Devia gritar mesmo sem fúria ou com uma fúria apenas simulada. Vem sentar-se diante da filha. A doçura da própria voz o surpreende.
— Fala, minha filha.
Encara-o:
— E agora?
O velho tem a sensação de que é um ser esvaziado. Nada por dentro, nada. Ou melhor: — por dentro só o vácuo. Ainda há pouco chorara como um pulha, sim, como um pulha. E agora, o que sentia era, justamente, a impossibilidade de sofrer. Por um momento, desejou ser o pulha das lágrimas. Engraçadinha começa a se desesperar:
— E agora, papai ?
Disse:
— Reze, minha filha.
Irrita-se:
— Escuta, papai!
Interrompe:
— Você é moça, minha filha, nova...
Naquele momento, êle daria tudo para sofrer. “Eu sofria ainda agora e já não sofro”, era o seu lamento interior. Engraçadinha continuou:
— Mas, papai, não é isso, papai! Escuta! Eu tenho 18 anos...
— Reza.
Aquilo a enfureceu. Levanta a voz:
— Até hoje, até ainda agora, eu tinha um primo. Nunca ninguém chegou junto de mim pra dizer: — “Teu primo é teu irmão!” Sílvio sempre foi meu primo, sempre! — e pergunta, na sua violência contida: — Está ouvindo, meu pai?
Diante dela, com uma monstruosa impotência para a dor, êle repete na sua fixação triste e doce: — “Reza”... Diria sempre a mesma coisa, no mesmo tom brando. Ela, porém, já não se contém: — “Vou até o fim. Direi tudo”.
— Eu gostei desse primo desde garotinha. — Baixa a voz: — Um dia, ou uma noite, sei lá, eu me entreguei ao meu primo. O senhor compreende? Ao primo. Escuta, papai: — quando eu me entreguei, era ainda meu primo, como sempre fôra. De repente, o senhor, que nunca me disse nada, não é, papai? O senhor vem e diz: “É teu irmão!” E já tinha acontecido tudo!
Começa a chorar. O pai balbucia, como se falasse do fundo de um sonho: — “Teu irmão”. Engraçadinha ergue o rosto:
— Papai, eu não tenho culpa de nada!
Ela gritava. Foi a cólera da filha que o despertou. Ergueu-se. Oh, graças, porque voltava a sofrer! De nôvo sentia a dor. Experimentou a saudade da cunhada morta — tão desejada em vida e mais desejada depois que a perdera. Com uma dor exultante, berrou:
— Você me acusa?
Trincou os dentes:
— Acuso!
Recuava diante da cólera paterna, mas ia repetindo: — “acuso!” Por um momento, êle pára. Pensa: — “Quero que ela me irrite mais! Que me desafie!” Desejou, com tôdas as forças, que a filha o insultasse. “Se ela me insultar, quebro-a em dois!” Repetia mentalmente: — “Em dois!” Não tinha mêdo da própria violência, embora se sentisse bem próximo da insânia. Ocorreu-lhe a hipótese: — “E se eu enlouquecesse agora?” Desafiou a filha:
— Continua! Por que não continua? Sou o culpado, e que mais?
Apertava a cabeça entre as mãos, soluçando. O velho a contemplava, com um sorriso mau: — “Não é só sexo. Também chora”. Engraçadinha teria pouco o que dizer. Soluçava ainda:
— Por que o senhor não me disse? Teve dezoito anos para me dizer!
No seu espanto, levantou-se:
— Dizer, eu? Eu não diria nunca. Ou querias — sua miserável — que eu fôsse contar para todo mundo que fôra amante de minha cunhada? Isso ia morrer comigo, ia enterrar-se comigo e apodrecer com a minha carne e com minha alma! Só eu sabia e Êle?
Continuava a falar de Deus como de algo pessoal, tangível, como o amigo ou cúmplice fisicamente palpável. Ninguém mais conhecia a paixão. No confessionário, dizia tudo, menos que fôra amante, por uma hora, por um momento, da cunhada. O irmão, que êle adorava, estava fora, viajando. Podia desejar tôdas as mulheres, menos aquela. Aquela, nunca! E, no entanto, ela passara, por lá, uma tarde. Vinha trazer um recado do irmão, ou melhor: — vinha mostrar uma carta do irmão. Leram juntos o trecho final: — “Você e o Arnaldo são tôda a minha vida”. E, súbito, o desejo nasceu sem uma palavra, sem um olhar. Ela foi arrastada. Balbuciava, no seu espanto: — “Aqui não”. Agora, olhando para Engraçadinha, êle pensava: — “Não direi a ela, nem a ninguém, que foi aqui mesmo”. Instintivamente, olhou para o divã: — “Lá!” E, às vezes, na Assembléia Legislativa, presidindo a sessão, pensava que, no divã, a mão puxando a calça, o trabalho dos quadris... O filho que não podia nascer. Súbito, o irmão morre lá fora. Enquanto o caixão vem do sul, ela, amassando o lencinho, diz-lhe: — “Agora pode nascer”. Foi só. Anos depois, êle achava: — “Só conhece o amor quem possuiu a cunhada impossível”. Olhou, uma última vez, para o divã de um momento eterno.
— O senhor nunca se lembrou que tinha uma filha!
Atônito, quis segurá-la pelo braço: A pequena desprendeu-se, violentamente:
— Não me toque!
— Você me desafia?
E ela:
— Desafio!
Êle pensou: — “Mulher precisa ter mêdo físico”.
Vai até a porta, abre e grita para dentro:
— Ninguém venha cá!
Empurra a porta e fecha à chave. Engraçadinha recua: — “Mas que é isso, papai?” Olha para os lados, na esperança da fuga impossível. Dr. Arnaldo puxa o cinto de couro grosso. Mas não se apressa. Pensa ainda na outra, na morta. Veio-lhe uma reflexão: — “Os magros como eu só devem amar vestidos”. Tinha ódio da própria nudez esguia e lívida. Caminha para a filha. Esta grita:
— Não, papai! O senhor nunca me bateu, papai!
E êle, fora de si;
— Não corra!
Engraçadinha tenta fugir, colocar-se detrás dos móveis. Mas, recuando, de costas, tropeça e cai em cima do divã. Dr. Arnaldo bate nas costas, nas pernas, nos braços. Dir-se-iam lambadas de fogo. Ela esganiça a voz:
— Não, paipaizinho, não!
O velho continua, porque o terror da filha o exaspera. Está conhecendo um prazer inesperado, uma embriaguez devoradora. Ela berra: — “Basta! Basta!” Êle pára, bruscamente. Engraçadinha soluça ainda, enovelada no divã:
— Papaizinho!
domingo, 6 de setembro de 2009
CAPÍTULO XVII
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Um comentário:
Textos fortes!!...
Boa semana pra vc menina
beijos
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